Guarani Kaiowá - 1

Tupã não agüenta
tamanha tristeza


A violência de ontem e de hoje fez a vida do guarani ficar triste. De repente, o suicídio. O povo que estava em busca da Terra sem Males luta agora para garantir o direito à terra e à vida.
E isso já é muito.


Texto: Paulo Lima
Fotos: J. R. Ripper/Imagens da Terra


Fim de tarde de uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1995, em Dourados, Mato Grosso do Sul. Dona Juliana quase morre de desespero ao encontrar um dos quatro filhos, André Paulo, 23 anos, agonizando. Pendurado a um pé de angico a poucos metros de casa, tinha se enforcado com a própria camisa. Aflita, a mãe correu em busca de socorro, mas era tarde. A razão da tragédia, ela resumiu depois numa única palavra: tristeza.

André deu adeus ao mundo um dia após a visita de Nélson Jobim à aldeia. O ministro da Justiça participou de cerimônias, visitou famílias em luto pelo mesmo motivo que tanto abalaria o coração de Dona Juliana no dia seguinte, fez promessas – lembra Anastácio Peralta (nome de branco), ou Avá Rudju (nome de índio), amigo próximo de André Paulo.

"Sem terra, a gente fica meio perdido, sem rumo. Não sabe se é índio ou se é branco", expressa Rudju, 36 anos, integrante da associação Urê Unitê, que luta pelo resgate da cultura kaiowá. Ele já perdeu a conta dos parentes guaranis que praticaram ou tentaram o suicídio.

Araldo Veron, 22 anos, já tentou quatro vezes. Está triste, ele também, porque a terra é pouca e o que ganha mal dá para sustentar os filhos Cléucio, de 3 anos, e Roselandi, de 2. Separado há um ano da mulher, mora com os filhos na casa dos pais, uma construção de 30 metros quadrados, feita de madeira e bambu e coberta de sapé. O espaço que ele, o pai e os irmãos têm para cultivar não soma três hectares, e boa parte é terreno alagadiço.


Mais que na Hungria


André, Veron e muitos outros. A crise que leva os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul ao suicídio estourou em 1986. Os números assustam. Só no ano passado, 56 índios se suicidaram. Foram 211 casos nos últimos dez anos, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário, o Cimi. Muito maior foi o número de tentativas que, por alguma razão, não chegaram a se concretizar.

A maioria das mortes foi por enforcamento. Em geral, são jovens entre 18 e 25 anos. Mas há também muitos casos envolvendo crianças e adolescentes, um em cada cinco no último ano. Luciene Ortiz, da aldeia de Porto Lindo, no município de Japorã, tinha 9 anos, e Fortunata Escobar, de Caarapó, 10.

Nos primeiros dias deste ano foi a vez de Deliane da Silva, também de 10 anos. Deliane, que bebeu agrotóxicos, encabeça a lista de onze pessoas que se suicidaram de janeiro até aqui.

As estatísticas mostram que, proporcionalmente, o índice de suicídios entre os Kaiowá é quase seis vezes maior que na Hungria, que ocupa o primeiro lugar no mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera anormal a ocorrência anual de mais de um caso em cada 10 mil habitantes.

Além de ganhar tons de tragédia brasileira na imprensa, as mortes desnorteiam os especialistas. Antropólogos, psicólogos e funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) quebram a cabeça para descobrir as razões do infortúnio. Muitas vezes, nessa busca, esquecem de conversar com os próprios Kaiowá sobre o assunto.


Mãe-terra ausente


"É difícil o branco entender, porque não é o branco rico que está morrendo", afirma Marta Silva Guarani, sobrinha do líder Marçal Tupã-y, grande defensor dos Guarani, assassinado em 25 de novembro de 1983 a mando do fazendeiro Líbero Monteiro.

"Não adianta os índios se amarem e verem os filhos nascer, se eles não têm a mãe-terra para abrigá-los, ensiná-los a plantar e adorar ao Deus Tupã. Como pode Tupã esquentar o chão que não existe mais?", pergunta Marta, que leva em frente a luta do tio mártir e já sofreu várias ameaças de morte. "Por isso, Tupã está triste, e os Guarani se suicidam."

Desde 1978, quando começaram a ser registrados os primeiros casos de suicídio de índios na região, o historiador Antônio Brand, da Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, investiga o assunto. A conclusão a que chegou é que não se pode reduzir a questão a uma causa única. Mas há uma razão principal, segundo Brand, que trabalhou no Cimi de 1983 a 1991: o confinamento de muitos índios em pequenos territórios, insuficientes à sua sobrevivência física e cultural.

O padre jesuíta e antropólogo Bartomeu Meliá, que há quase trinta anos acompanha os Guarani no Paraguai e no Brasil, descarta a idéia – defendida por alguns antropólogos – de que o suicídio seja uma prática cultural dos Kaiowá. Ele também aponta a falta de terra como um dos motivos preponderantes, ao lado da influência das religiões dos brancos e do desequilíbrio emocional que hoje sofre a família guarani.


Sacerdotes rezam


Na visão religiosa dos Kaiowá, o suicídio é uma doença, fruto de feitiços, que afeta a palavra, uma das três almas que o índio possui. Quando o mal ataca, a pessoa não consegue mais falar, fica fechada, deprimida. Prova disso, no dizer dos índios, é que a maioria dos suicidas prefere a morte por enforcamento, que aniquila a voz, antes de tudo.

No esforço de combater a praga, os sacerdotes kaiowás (pa'i) da região de Dourados fazem maratonas de rituais. Em 91, foram buscar ajuda no Paraguai para a celebração do Porahey, uma cerimônia religiosa que anula os feitiços.

A vida mudou muito, e o índio pegou o modo de vida do branco. Para afastar essa doença, que tanto assusta, é preciso retomar a reza e fortalecer os caciques – defendem os sacerdotes. Mas como manter as rezas e fazer festas, se "reduzem as nossas terras e acabam com a mata, dentro e fora das reservas?", pergunta um deles.

Os casos mais freqüentes de suicídio vêm ocorrendo em três das 22 aldeias guaranis do Mato Grosso do Sul: Dourados, Caarapó e Panambizinho. Nelas se concentram índios de dezenas de aldeias destruídas nas últimas décadas.

Em Dourados, a recordista, vivem 8.900 índios, espremidos em 3.474 hectares de terra. Com o tempo, a cidade de Dourados, hoje com 170 mil habitantes, foi crescendo e chegando cada vez mais perto da aldeia. As fazendas também se expandiram, encurralando os índios. A vida do guarani foi perdendo a graça. A aldeia virou favela ao redor da cidade.

De resto, a situação de penúria tem empurrado muito índio para a prostituição, bebedeira e mendicância. Outros vivem como desaldeados em beiras de estradas, moram debaixo de lonas pretas, vendem artesanato onde podem... Há o guarani de rua e o guarani de rodovia.

Sem trabalho, o índio torna-se presa fácil nas mãos dos donos de usinas de álcool e fazendeiros da região. Há casos de usinas que empregam exclusivamente mão-de-obra indígena no corte da cana. Um índio chega a cortar seis toneladas de cana por dia.

A maioria ganha muito pouco, quando não trabalha em troca de comida, em regime de semi-escravidão, segundo denúncias do Cimi. O salário miserável ainda tem que ser dividido com o "gato" – o aliciador de mão-de-obra temporária –, que chega a embolsar até 15 por cento, de acordo com a produção.

"A ausência dos pais de família, por dois ou mais meses, é fator de desintegração da família kaiowá", teoriza Antônio Brand. Numa de suas últimas visitas à região, ele apurou que muitos índios recebem, em média, de 250 a 300 reais por um contrato de 45 dias, tendo que trabalhar em torno de dez horas diárias.


Reza de branco


No meio de tanta agonia, a máquina da fé propaga-se com velocidade espantosa, sobretudo em Dourados, o epicentro da tragédia. São mais de duas dezenas de Igrejas cristãs de todo tipo, algumas até sem nome, em torno de algum pastor qualquer.

Freqüentemente, não se leva em conta a cultura kaiowá, a religião, o seu modo de ver a vida e o mundo. Há pastores que proíbem os fiéis de freqüentarem os rituais indígenas. Outros simplesmente associam a cultura kaiowá às coisas do diabo. "Nem na aldeia os índios são valorizados. Como um índio mesmo se expressou: 'Quando entra reza de branco, a do índio fica escura'", lembra Antônio Brand.

Um caso antigo ficou na memória. No final dos anos 70, a atitude de um missionário provocou revolta em uma das aldeias. Ele retirou o mbaraka (objeto sagrado) das mãos de um sacerdote guarani para, "em nome de Deus", lançá-lo ao fogo. Resultado: o sacerdote guarani mudou com a família para outra área, fugindo do missionário incendiário e do seu fanatismo.

Grilagem de terras. Assassinatos. Miséria. Desrespeito. Contra os índios, todas as armas têm sido usadas, generosamente. "Tudo isso provoca uma grande dor, sobretudo nos jovens, que acabam se matando", analisa Sandra Mara Silva, filha de Marta Guarani.

Sandra, 26 anos, mãe de duas filhas, nasceu em Dourados. Quando tinha 6 anos, teve que fugir com a mãe, que estava sendo ameaçada de morte. Hoje, mãe e filha moram na periferia de Campo Grande e trabalham na Associação Kaguateka dos Índios Desaldeados Marçal Tupã-y.

Sandra não tem dúvidas sobre a causa do suicídio dos parentes kaiowás: faltou terra, faltou tudo...


(Paulo Lima, p. 14)



Povos guaranis

Segundo estimativas, os Guarani somavam entre 1,5 e 2 milhões de pessoas no século 16. Habitavam uma área que ia do Estado de São Paulo, no Brasil, até a Argentina e o Paraguai e falavam fundamentalmente a mesma língua.

Um dos fundamentos da vida guarani é a busca da "Terra sem Males" – uma espécie de paraíso terrestre, sem doenças nem morte. Grupos inteiros peregrinaram anos a fio à sua procura.

Guerras, maus-tratos, epidemias e cativeiro formaram os quatro pilares do genocídio provocado pelos conquistadores europeus. Entre 1610 e 1768, milhares de Guarani foram juntados pelos padres jesuítas em dezenas de "reduções". Estabeleceram uma sociedade organizada e auto-suficiente, que conseguiu resistir durante muito tempo às investidas de caçadores de escravos espanhóis e portugueses.

A batalha dos Guarani pela sobrevivência física e cultural continua nos dias atuais, no Paraguai, Argentina e Brasil (Maranhão, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul).

A família guarani divide-se em três grandes grupos: os Avá-Chiripá ou Nandeva (com uma população estimada em 9 mil pessoas), os Mbyá (entre 10 e 11 mil) e os Kaiowá (35 a 40 mil). Estudiosos afirmam que também os Chiriguanos, da Bolívia (60 a 70 mil pessoas), fazem parte da mesma família.


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