Entrevista com o teólogo
Aloysius Pieris

Evangelho em asiático

Para o padre jesuíta Aloysius Pieris, o mais famoso téologo asiático, do Sri Lanka, o anúncio do Evangelho no continente deve ter por base as bem-aventuranças, patrimônio comum a todas as religiões da Ásia.

Duas coisas são fundamentais: que a Igreja católica abandone o seu rosto ocidental e que se comprometa radicalmente com as maiorias pobres da população. A seguir, trechos da entrevista.


Giovanni Ferró – "Jesus"


Sem Fronteiras e Jesus – A Ásia, em geral, dá a impressão de ser um continente impermeável à evangelização. O colonialismo do passado tem alguma coisa a ver com isso?

Aloysius Pieris – O cristianismo colonial sofreu uma crise política no momento em que o processo de descolonização adquiriu inevitavelmente tons anti-cristãos, pelo próprio fato ser anticolonial. Os movimentos pela independência, ao contrário, freqüentemente encontraram inspiração em religiões não-cristãs. O fato, porém, é que a face colonial do cristianismo permanece ainda hoje. Por isso, a tentativa de descolonizar o cristianismo é uma tarefa de todo tamanho, que a Igreja enquanto tal deve cumprir.

Na verdade, as nossas Igrejas asiáticas são até hoje uma simples extensão das Igrejas européias. Mudou apenas a cor dos bispos, que em outros tempos eram rigorosamente brancos.

A hierarquia da Igreja encontra-se muito bem inserida na elite neocolonial das sociedades asiáticas. Esse é o nosso problema. Ser padre ou religioso é um modo de subir na vida e fazer parte dos estratos mais elevados da sociedade. Os seminários produzem um clero romanizado e ocidentalizado. De fato, em alguns países, bispos e padres ainda pensam e rezam na língua dos antigos colonizadores.


E como deveria ser?

– A hierarquia da Igreja deveria se comprometer com a luta em favor de vida para os pobres, que são a grande maioria da população. Isso significa deixar-se envolver pelo "mistério pascal do Cristo não-cristão da Ásia", isto é, partilhar a condição de vítima de milhões de pobres, dos quais a maioria não é cristã.

O futuro da Igreja vai depender muito do modo como nós cristãos respondemos a esse problema. A mensagem central do Evangelho é esta: no reino do dinheiro, quem reina é a pobreza. No Reino de Deus, ao contrário, são as exigências dos pobres que devem ditar o modo como organizamos a vida nesta terra.

O chamado milagre econômico do Japão, Coréia e Cingapura – visto como ideal a ser perseguido pelo resto dos países asiáticos – segue leis econômicas impostas pela ditadura do dinheiro, e não pelas necessidades cotidianas dos pobres. Receio que as Igrejas, em geral, não estejam dispostas a resistir contra essa tendência de progresso. Como corpos mortos, são arrastadas pela correnteza. Só um corpo vivo é capaz de nadar contra a corrente.


Mas há exceções...

– Graças a Deus, existem pequenas comunidades proféticas, que mostram vitalidade, mesmo que muitas vezes sejam tachadas de subversivas pela própria Igreja e pelos governos. O Deus que proclamamos em Cristo fez uma aliança com os pobres. Ser fiéis a essa aliança significa lutar ao lado de Deus e dos pobres contra os poderes e principados do dinheiro, contra o poder absoluto do capital (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, etc.).

Devemos anunciar, em palavras e obras, os dois únicos dogmas cristológicos que a Igreja até hoje não definiu, mas que fazem parte da essência do Evangelho: primeiro, que Jesus Cristo é Deus em conflito com o deus dinheiro. Segundo, que Jesus Cristo é Deus que se uniu irrevogavelmente aos pobres, através de um pacto de defesa, de uma aliança.

Essa é uma teologia perigosa, mas uma teologia que não é perigosa não é teologia. É subversiva na ótica do império do dinheiro. Ou, também, de uma nova evangelização que pretende converter a Ásia a um Cristo neocolonial, sem pôr em crise a perversa ordem econômica. É disso que vai depender inteiramente o futuro da Igreja asiática.


Nos documentos oficiais fala-se muito de "opção pelos pobres". Como isso se concretiza no cotidiano das Igrejas asiáticas?

– Muitas organizações não-governamentais (ONGs) trabalham a serviço dos pobres, mas os seus integrantes não são pobres. Não me parece que seja esse o ideal apresentado pelo Evangelho. Acontece que nós, padres e bispos, preferimos o modelo das ONGs, enquanto o Evangelho nos convida, primeiro, a nos fazermos pobres, para depois trabalharmos junto aos pobres. Temo que também a doutrina oficial da Igreja sobre a opção pelos pobres proceda de lugares e estilos de vida confortáveis.

Apesar disso, existem grupos que fizeram realmente as duas opções: por uma vida pobre e pelos pobres. A esperança para a Igreja na Ásia encontra-se nesses pequenos grupos, de onde surgiu também a teologia da libertação asiática. São verdadeiros laboratórios de esperança.


Em sua avaliação, qual é hoje o sentido da missão na Ásia?

– O modelo da "plantatio Ecclesiae", em sua versão atual, tenta instituir um sistema de controle à distância, através da multiplicação de sedes episcopais. O resultado é uma extensão, para a Ásia, de uma Igreja centrada na Europa. O tipo de cristianismo que se procura difundir na Ásia é precisamente o que fracassou na Europa. Não tem suas raízes nas bem-aventurança, não é evangélico. Vem impregnado da ideologia agressiva do proselitismo, que Jesus condenou abertamente (Mateus 23,15).

Acredito que o autêntico cristianismo se encontre no Sermão da Montanha. Esse cristianismo evangélico das bem-aventuranças é patrimôno comum a todas as religiões asiáticas. Um cristianismo que espelhe essa espiritualidade não representa ameaça para os não-cristãos, e sim ajuda para que alicercem a própria fé numa religiosidade libertadora. A conversão ao Reino de Deus (antes que à Igreja), que nós invocamos, não é "mudança de religião", e sim "mudança de mentalidade", como entendia Jesus.


A conversão ao cristianismo, no sentido clássico, torna-se então supérflua?

– Jesus não é inimigo de nenhuma religião, mas dos falsos deuses, que usurpam o lugar do verdadeiro Deus. Também a Igreja é chamada a se converter, renunciando aos muitos deuses que a impedem de compreender as outras religiões, culturas e teologias.

A Igreja deve trabalhar em conjunto com todas as outras religiões contra a idolatria. Trata-se de uma missão inter-religiosa contra um estado de pecado comum. A Ásia só irá aceitar um cristianismo enraizado nesse tipo fundamental de espiritualidade, porque constitui a linguagem espiritual comum a todas as religões. Só um cristianismo assim pode contar a história de Jesus de modo persuasivo e, agindo desse modo, escrever de novo o Evangelho para o povo asiático.


Pág. 14: Ide ao povo asiático