II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas

São Paulo, 7-11 de novembro de 1994

Intercâmbios

TEOLOGIAS ÍNDIAS DE HOJE

(2ª parte)

Eleazar López Hernández
Cenami, México, 1994


<< (1ª parte) <<

2ª parte

07. A Teologia Índia como parte integrante do projeto global índio
08. Dificuldades para aplicar o termo "teologia" ao mundo religioso indígena
09. O que é a teologia no âmbito cristão?
10. O que pode ser a teologia no mundo indígena?

>> (3ª parte) >>

11. Desafios da Teologia Índia
12. Perigos da Teologia Índia
13. Perspectivas de futuro


7. A Teologia Índia como parte integrante do projeto global índio.

A Teologia Índia não pode ser entendida à margem da globalidade da atual emergência ou insurgência do mundo indígena neste continente. Por isso a Teologia Índia não é um produto da pastoral nem está ligado exclusivamente às igrejas. É resultado do desejo das comunidades índias de não ser o que os demais determinam que sejam, mas o que elas mesmas querem ser. É, portanto, o desejo de autodeterminação em nível religioso, conseqüente com a necessidade de autodeterminação em nível político e econômico.

Em conseqüência, a Teologia Índia forma parte da conquista dolorosa da maioridade, que nos foi negada por séculos pela sociedade colonial. É a afirmação firme do direito que nos assiste de pensar Deus com nossa própria cabeça, não com a cabeça de Aristóteles ou da cultura ocidental.

Isso não quer dizer um retorno romântico e acrítico às etapas pré-colombinas de nossa história, como si fosse possível colocar de lado os 500 anos. Mais bem, é assumir com responsabilidade histórica a possibilidade de reformular constantemente e em liberdade nossa cultura criando novas modalidades de ser ou apropriando-nos do que, ao nosso redor, nosso povo considera positivo para sua vida. Se nossas comunidades já incorporaram do Ocidente muitos elementos reformulando-os, isso devem continuar a fazê- lo de maneira aberta e permitida, não sub-repticiamente e a escondidas, como o fizeram até agora.


8. Dificuldades para aplicar o termo "teologia" ao mundo religioso indígena.

Diante do fenômeno da Teologia Índia muitos céticos se perguntam: é válido aplicar, sem reservas, a categoria "teologia" à voz religiosa dos índios, que são iletrados e cuja linguagem não é científica? Que sentido tem então a palavra Teologia? Não é dissipar os termos cristãos se os aplicarmos acriticamente a produções empíricas, que não têm na base sólidos marcos teóricos nem são publicados, nem contam com verdadeiros profissionais do saber teológico?

Além disso, segundo eles, o conceito, tal como se conhece agora, não existia propriamente no pensamento de nossos povos, dado seu atraso cultural. Isso é o que eles pensam, mas a história nos mostra o contrário. Mais bem é no cristianismo onde este conceito não existia.

Sabemos que a aplicação do termo teologia ao pensamento religioso de nossos povos não está isenta de problemas. Isso acontece não só porque na igreja continua prevalecendo a idéia de que a palavra dos pobres sobre Deus é tão imperfeita e está tão contaminada que não merece ser considerada como verdadeiro conhecimento teológico, mas também porque nos intelectuais indígenas de hoje há sérias reservas para aceitar que se apliquem à produção intelectual de nossa gente as categorias do pensamento ocidental, de onde surgiu a palavra teologia. No fundo está, por uma parte, o preconceito a respeito do valor das ferramentas gnosiológicas populares; e, por outra, o medo de usar categorias de pensamento que, como ponto de partida, desvalorizam o ser e o conhecer indígenas.


9. O que é a teologia no âmbito cristão?

Certamente a palavra teologia, como categoria intelectual reconhecida no âmbito dos estudiosos, foi uma adquisição que o mundo ocidental cristão tomou do helenismo, no qual tinha uma conotação pejorativa como "metafísica", mitologia ou fantasias do povo ignorante, em contraposição a "física", cujo objeto é perfeitamente comprovável pelos sentidos e a razão.

No cristianismo grego-latino, que incorporou o termo batizando-o, a teologia chegou a significar "a procura crente da compreensão da fé", "o empenho em demonstrar sua racionalidade a aqueles que o pedem" ou o esforço "por esclarecer o ensino da revelação frente às instâncias da razão... (de) uma forma orgânica e sistemática" (cf. Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, da Congregação para a Doutrina da Fé, n« 1, 5 e 21).

Noutras palavras, a teologia é a "compreensão da fé" (Intellectio fidei) e, por tanto, resulta do esforço de aplicar a razão aos mistérios da fé ("fides quaerens intellectum", a fé busca a inteligência). Por isso, se a define como a ação de "dar razão de nossa esperança", segundo a expressão muito antiga de São Pedro (1Pe. 3,15). Em linguajar mais técnico, se diz que é um discurso reflexivo que trata de explicar a fé que temos em Deus; um Deus que experimentamos de maneira vital ao entrar em comunhão com Ele e com seu projeto de vida. Portanto, a teologia é também a palavra que acompanha e guia o compromisso de viver esse projeto que vem de Deus. A teologia não é a fé, mas a compreensão racional da fé. Por isso, não se centra unicamente em querer entender Deus, mas abarcar todas as realidades humanas e cósmicas. A teologia é um modo de conhecer-nos e de conhecer o mundo desde a perspectiva da fé que temos em Deus.

Não se faz teologia para chegar a crer em Deus. Crer é anterior a pensar a fé. Crer é resultado de um ato teologal, pelo qual nos lançamos à aventura de aceitar, com a mente e o coração, a proposta feita por Deus. Se faz teologia porque se crê nele. Se faz teologia para nos explicar, e explicar aos outros, em que e por quê cremos. Quem faz teologia (ato segundo) é porque crê (ato primeiro) e porque quer entender, com sua fé, a globalidade da existência humana; porque quer explicar, a si mesmo e aos outros, a racionalidade de sua fé e a racionalidade das coisas, desde a ótica desta fé. Pode ser que seus interlocutores sejam também crentes como ele ou gente de outras crenças ou simplesmente não crentes. Em cada caso, a teologia se reveste de roupagens adequadas às circunstâncias.

A teologia é também a palavra humana que trata de mostrar as razões que possui a fé, dom de Deus. Partimos aqui da idéia de que a fé não contradiz a lógica e as exigências científicas da razão. Fé e razão se dão a mão na teologia. Por isso, "a tarefa própria da teologia, de compreender o sentido da revelação, exige a utilização de conhecimentos filosóficos... ciências históricas... ciências humanas, para compreender melhor a verdade revelada sobre o homem e sobre as normas morais de sua obra, pondo em relação com ela os resultados válidos destas ciências" (ibidem, 10).

A diferença da fé, que é dom de Deus, a teologia é um produto humano, que se serve das ferramentas do conhecimento criadas pelas culturas dos povos, que são como vasilhas multiformes com as quais intentamos pegar algo do Oceano imenso de Deus. Sabemos que não existe nenhum recipiente capaz de conter a Deus. Por isso, quando na teologia falamos dele, somos conscientes de que não temos mais que uma leve imagem de sua presença, uma aproximação ou analogia de sua pessoa, a partir dos melhores esquemas de conhecimento tomados de nossa experiência humana. Sempre é mais o que ignoramos do que sabemos de Deus.

Toda teologia é limitada, porque é um caminho que fazemos, como humanos, até a compreensão dos desígnios divinos. O caminho está profundamente marcado por nossa história e cultura particulares. Por isso, há que manter-se críticos das ferramentas do conhecimento que utilizamos, para não cair na blasfêmia de pretender ter a Deus preso em nossos conceitos. Porém, por outro lado, não é possível nenhum trabalho propriamente teológico se não se usam ferramentas culturais. Por isso, para o teólogo - cristão o não -, "esta tarefa (de assumir elementos da cultura de seu ambiente) é certamente árdua e comporta riscos, mas em si mesma é legítima e deve ser estimulada" (ibidem).

Agora bem: como a cultura, a teologia se faz dentro de uma coletividade, de uma comunidade que crê. Desta, o teólogo recebe e compartilha a fé e, em função dela ou junto com ela, o teólogo dá razão de dita fé. É o conjunto quem apóia, respalda ou questiona a teologia elaborada. O serviço deste respaldo comunitário, que exercitam normalmente pessoas caracterizadas dentro da comunidade, é o que na igreja se denomina Magistério, cujo papel é o de "conservar santamente e de expor com fidelidade o depósito da revelação divina" (ibidem, 16), "vigiar para que o povo de Deus permaneça na verdade que faz livres" (ibidem, 20). Noutras palavras, o Magistério cuida que as explicações teológicas, que os membros da igreja elaboram, não contradigam nem prejudiquem o sentido fundamental da fé comunitária.


10. O que pode ser a teologia no mundo indígena?

Pensar que os indígenas de antes careciam de conceitualizações sobre Deus foi um erro bastante comum entre os estudiosos e missionários do passado colonial, cujas conseqüências seguimos carregando até nossos dias. Partindo de uma supervalorização dos esquemas abstratos tomados do mundo grego, eles acharam que tais esquemas - considerados universais- não fossem desenvolvidos no mundo indígena nem pré-hispânico, nem pós-hispânico porque os índios simplesmente não chegavam a compreendê-las. E, não existindo ferramenta científica adequada, não havia ciência nem teologia propriamente dita. Unicamente, conjecturas ou aproximações imprecisas.

Este preconceito se baseou em informações de segunda ou terceira mão ou em observações etnocêntricas superficiais. Porque uma aproximação séria às fontes e à expressão atual da religiosidade indígena mostra o enorme sentido teologal de nossos povos, que se desborda em uma quantidade impressionante de produção teológica digna das melhores bibliotecas. O que acontece é que, aos olhos míopes e à mente fechada de um colonizador, os símbolos religiosos e a linguagem ritual do povo resultam totalmente incompreensíveis.

Os habitantes originários deste continente e seus descendentes continuam sendo primordialmente agentes teológicos, antes de que peritos lapidários, arquitetos, matemáticos, astrônomos, políticos ou estrategistas militares. Em todo o que fazem ou faziam põem o acento no sentido teológico pelo qual desejam impregnar a vida inteira.

Em seu longo processo de desenvolvimento material e espiritual, os povos originários deste continente alcançaram em todos os níveis, incluído o religioso, admiráveis patamares de conhecimento. Inclusive, deram amostras de um gosto muito refinado. Por isso, - ainda aceitando que, na época de maior esplendor, existia uma distância muito grande entre as elucubrações da classe sacerdotal e o povo simples, para o qual a linguagem rebuscada dos sacerdotes era praticamente ininteligível - temos que reconhecer que ditas elucubrações eram, apesar de tudo, o alicerce religioso de todos e, a eles chegavam interpretadas por pessoas indicadas especificamente para este serviço.

Os livros do Chilam Balam, entre os mayas, são parte dessa leitura teológica críptica da história, que requer ser transportada a uma linguagem mais simples não só agora, mas na mesma época em que se escreveu. Os halach huinic, dos mayas, e os tlatoani astecas, em quanto supremos dirigentes civis e religiosos, ao falar de Deus, se auxiliavam sempre de intérpretes para o povo, para a gente comum (os macehuales). Essa espécie de produção teológica tinha sua razão de ser e, por isso, continuou depois da destruição da casta sacerdotal. Inclusive, fora do âmbito meso-americano o esquema se mantém. Por exemplo, entre os kunas, onde os sailas cantam, até nossos dias, a tradição e são constantemente traduzidos pelos argamar do povo.

No passado existiam - e na atualidade sobrevivem de alguma maneira - uma teologia refinada e uma teologia popular que não estavam totalmente desvinculadas. A popular se nutria da refinada e aquela tomava da popular seus temas vitais para a elucubração rebuscada. A teologia refinada e seus elaboradores eram muito apreciados naquele tempo, pois, enquanto propiciavam a partilha, sabiam manter ocultos os segredos da comunidade. Pelo canto sagrado dos halach huinic, dos tlatoani, dos siríame, dos chagóla, o povo recebia - em linguagem críptica - e conservava intatas suas esperanças utópicas, ao mesmo tempo que, pelo serviço dos tradutores ou intérpretes, as aplicava e atualizava constantemente à sua vida concreta. Com esta modalidade de exercício teológico, a fé se transmitia em mitos e narrações sagradas que eram cantadas ou ritualizadas nas grandes festividades religiosas.

A implantação da cristandade européia sobre nossos povos, há 500 anos, implicou na tarefa de erradicar a teologia refinada ou institucional de nossos povos. E a maneira de fazê-lo foi a guerra sem quartel contra os sacerdotes e sábios, contra os textos e lugares sagrados dos antepassados. Pois, pensavam os missionários, desaparecidos os sábios, a massa da gente comum não teria acesso a tais "superstições ou enganos diabólicos".

Unida a esta guerra, a estratégia implicava em forjar na mente das novas gerações o ódio contra as crenças de seus pais e avós a fim de dispô-los à aceitação total do cristianismo. Por isso, foi preocupação dos missionários desligar aos filhos de seus pais para educá-los na nova lógica cristã através dos internatos indígenas que foram meios muito eficazes para a penetração cultural e religiosa.

A estratégia muito pronto deu seus frutos em crianças e jovens perfeitamente identificados com a Cristandade e dispostos a enfrentar aos adultos para erradicar a fé antiga e implantar a nova. É o caso das famosas "crianças mártires de Tlaxcala" que, fanatizadas e excitadas pela formação recebida dos frades, denunciaram a "idolatria" de seus pais e inclusive se atreveram a dar morte a um representante da religião indígena, que elas identificaram como "o Diabo" (cf. escritos de Fr. Toríbio de Benavente ou "Motolinia").

Se pode dizer que a estratégia logrou demolir as manifestações visíveis (templos, "ídolos", códices, sacerdotes, cerimônias) da teologia refinada ou institucional. Não obstante, não pode fazer nada frente ao pensamento e aos serviços teológicos populares, que não eram facilmente identificáveis, pois formavam parte da cultura geral do povo. Este manteve seus esquemas teológicos na intimidade pessoal ou familiar, ou na clandestinidade dos morros e da noite, ou os reformulou pondo-os a dialogar inter-culturalmente com os conteúdos do cristianismo. É o que deu por resultado o fenômeno que agora denominamos "religiosidade popular" ou "religião do povo". Houve ilustres missionários que apoiaram direita ou indiretamente este trabalho de apropriação do cristianismo, por parte dos povos vencidos.

Pelo que acabo de dizer, podemos concluir que, antes da conquista européia, existiam nos povos deste continente uma variedade de funções e categorias que tinham por objeto expressar a multiforme atividade teológica de seus membros. Muitas dessas categorias e funções, apesar de minguadas ou reformuladas no contexto cristão, se mantêm até nossos dias. E, por isso, podemos agora intuir o alcance que antes tinham.


Continua:

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11. Desafios da Teologia Índia
12. Perigos da Teologia Índia
13. Perspectivas de futuro


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00. Introdução: Teologia Índia, tema candente
01. Nova presença indígena hoje
02. Papel das igrejas na nova conjuntura
03. Falência dos projetos integracionistas dos Estados e das igrejas
04. Exigência de novas relações com os povos indígenas
05. Mudanças na mentalidade dos "companheiros de caminho" dos povos indígenas
06. Mudanças de estratégia na luta indígena







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