II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas

São Paulo, 7-11 de novembro de 1994

Oficina 3

O ECUMENISMO
DAS COMUNIDADES DE FÉ NEGRAS

(1ª parte)

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1. Pressupostos

1.1. Teologia da Libertação e Teologia Afro-americana e Caribenha

A Teologia da Libertação marcou o pensamento teológico dos cristãos da América Latina nos últimos 30 anos. Ela foi o instrumento de análise e compreensão de fé da realidade social dos nossos povos e, ao mesmo tempo, inspiradora dos compromissos eclesiais de ação frente aos desafios que nasciam dessa realidade. Com ela, os pobres e marginalizados da sociedade conseguiram ter uma visão macroestrutural das causas geradoras de sua pobreza numa perspectiva histórico-dialética. Com ela, desmascararam as ideologias que encobriam a realidade e emergiram como sujeitos históricos novos, capazes de atuar profeticamente, denunciando o mal social que aprenderam a localizar e analisar corretamente.

A Teologia da Libertação ajudou os afro-americanos, indígenas e mulheres a tomar consciência do que a sociedade envolvente tinha feito conosco: não-pessoas, não-ricos, não-poderosos, não-povos, e ter vergonha dessa situação. A Teologia da Libertação nos mostrou a parte negativa de nossa realidade, como seres "sem rosto e coração próprios".

A Teologia da Libertação nos ajudou a despertar e a dizer nossa primeira palavra, que foi de protesto diante a negação que nos foi imposta. Com ela demos os primeiros passos no caminho da libertação. Contudo, ao caminhar, descobrimos também os limites da ferramenta metodológica da Teologia da Libertação. Ela não abarcava todos os aspectos de nossa realidade. Requeriam-se novas ferramentas que nos permitissem entender também a parte positiva do nosso ser: nossa identidade cultural e religiosa. Um método que incorporasse a riqueza de nosso espírito e energia de vida.

Foi então que os afro-americanos, índios, mestiços e mulheres começamos a ir além da Teologia da Libertação em busca dos aportes que tomassem em conta a raça, o gênero, a etnia, a cultura, já não numa perspectiva pessimista como antes, isto é, como produto da interiorização de nossa pobreza e alienação, mas numa perspectiva otimista, enquanto trincheiras da luta libertadora e espaços de humanização da vida.

Nesse sentido, se construiu entre nós não somente uma teologia da negação do que somos, mas uma teologia da afirmação do que somos e queremos ser. Não somente uma teologia de protesto, mas uma teologia de proposta, que nos permita levar, com humildade, sem etnocentrismos, a riqueza de nossas utopias ancestrais aos demais pobres da sociedade.

Com isso, não queremos dizer que renunciamos à Teologia da Libertação. Hoje, mais do que nunca, ela é necessária, já que a opressão cresceu, pois nossos povos não são unicamente explorados, mas também excluídos do projeto de futuro. O que estamos fazendo é apropriarmo-nos da Teologia da Libertação dentro dos nossos próprios esquemas de pensamento, inculturá-la em nossa realidade, ampliando suas possibilidades de compreensão dessa realidade, e assim converté-la em nossa ferramenta de práxis cristã para a construção do Reino e das utopias de nossos povos.

1.2. Ter como dado fundamental o reconhecimento dos projetos, realidades e práticas afro-caribenhas.

Se ainda não estava tão claro por ocasião da 1ª Consulta, desta vez é imperativo levar em consideração, dentro da atual reflexão teológica afro-americana, a realidade caribenha em sua variedade.

A situação sociocultural, os projetos político-educacionais em andamento e a experiência nascida das práticas populares destas comunidades estão, finalmente, se fazendo sentir. Desse modo, os povos caribenhos já são, definitivamente, interlocutores imprescindíveis da teologia afro desse continente.

1.3. As práticas e as questões presentes nas CEBs como "fermento" motivador de uma eclesialidade dinâmica.

O que se tem chamado de Teologia da Libertação nestas últimas décadas não pode ser entendido se prescindirmos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Foi nesse espaço que se reconheceu e valorizou o papel do povo-sujeito da história, a saber, ao tomar a palavra, o povo desencadeia todo o processo libertador-humanizador.

A grande surpresa, porém, foi a redescoberta, segundo o que a nossa gente começou a dizer, de uma riqueza escondida nem sempre facilmente assimilável pelas formulações dogmáticas já estabelecidas. O que se descobriu foi que nossos antepassados já haviam iniciado, desde há muito tempo, um processo "antropofágico" de apropriação dos valores cristãos a partir de suas próprias tradições milenares. Chame-se a isso de inculturação ou sincretização, o importante é que se caminha para uma síntese original que não é mais uma mera adaptação do cristianismo romano-europeu.

Hoje parece claro não ser mais possível engaiolar a comunidade negra em nossas igrejas cristãs tradicionais. A igreja não é tão somente a comunidade dos que sonham os mesmos sonhos de Jesus de Nazaré. O jeito negro de partilhar e celebrar estes sonhos é componente essencial da reinvenção/recriação do cristianismo em terras americano- caribenhas (afro-ameríndias?).

2. Sinais emergentes e desafiadores.

Fazemos uma sistematização a partir de "nossa casa", nossa realidade afro.

A. Não há dúvida de que a "celebração" dos 500 anos permitiu aos povos indígenas e afro-americanos fazer conhecer ao mundo suas reflexões a partir de suas realidades, e dos parâmetros da fé, o evangelho e as culturas.
* Esta situação propiciou um crescimento das culturas e da teologia negra.
* Esta celebração nos desafiou a elaborar programas e reflexões teológicas a partir de nossa casa, isto é, feitas por nós como agentes de pastoral negros e profissionais de outras ciências encaminhadas a consolidar-se.

B. Os temas tocados e os documentos da IV Conferência de Santo Domingo nos sugerem alguns paradigmas a ter presentes.
* As realidades refletidas, tais como a promoção humana e a cultura cristã, propiciem que se comece uma nova elaboração teológica partindo dessas mesmas realidades.
* Santo Domingo faz um esforço para responder às inquietações surgidas nas décadas de 80 e que ainda não foram respondidas satisfatoriamente.
* É necessário propiciar um diálogo entre as teologias e as culturas negras para ressaltar os aspectos positivos que contribuíram a fortalecer a sua própria identidade negra e a formação do que hoje se conhece como América Latina e Caribe.
* A situação sóciopolítica dos povos negros da América Latina e Caribe continua complexa. O diálogo com as outras culturas exige que o povo negro recupere o respeito por seus próprios valores culturais e possa logo relacionar-se com orgulho com as outras culturas. Por isso, a reafirmação e a transmissão dos próprios valores começa em casa, na própria família e comunidade. Assim, cada qual lutará para melhorar as condições da mesma e não procurará fugir da mesma por ficar envergonhado.
* O Papa, em sua mensagem aos afro-americanos, nos desafia a renovar a vida de nossas comunidades defendendo e promovendo nossos valores. Esta nova sistematização teológica deve ajudar as comunidades negras a salvaguardar sua identidade.
* Deve ficar claro que quem melhor pode e deve guiar este processo de inculturação são os próprios afro-americanos, isto é, os agentes de pastoral negros.

C. A morte e a ressurreição como ponto de partida. Reconhecemos que com a encarnação do Filho de Deus, também irmão nosso, Deus se aproximou o mais possível do ser humano e que, com sua morte e ressurreição, derrubou todos os muros de separação.
* Daqui deve arrancar toda reflexão teológica. Todos os homens são seres humanos filhos de Deus que estão chamados a viver em fraternidade. O povo negro viveu sempre numa situação de crucifixão e acreditamos que é por isso que, ao longo do continente, se identifica mais com o Jesus da cruz, o Jesus sofredor.
* Deve-se notar que, apesar das experiências de morte, foi um povo amante da vida, o que se manifesta em suas celebrações e em sua realidade. O alicerce disso está numa grande espiritualidade que joga um papel central em sua vida.
* A nova reflexão cristológica deve puxar, inspirar para que possa ser dado o passo rumo ao Cristo ressuscitado que acompanha o caminhar do povo até a libertação- salvação. Este é o Cristo que questionará as situações de injustiça. É o Cristo que nos liberta do pecado pessoal e estrutural. Com o ressuscitado fomos convidados a dar o passo da morte à vida, das trevas à luz.

D. O crescimento da consciência e identidade de ser negra/o está proporcionando aos membros das igrejas históricas espaços de debate, reflexão e proposição de novas práticas nos ambientes intra-eclesiais. É o momento que favorece e enriquece a todos os ambientes das igrejas, pois estão sendo abertos novos temas que abrem, por sua vez, novos espaços onde os afro-americanos e caribenhos podem vivenciar suas práticas tradicionais, sua dimensão de fé (nos orixás, ancestrais, benzedeiras, curandeiras, etc.).
* A crescente participação e afirmação da comunidade negra nos espaços eclesiais vem gerando um estado de "crise intra-eclesial", onde são levantadas questões pertinentes aos novos sujeitos emergentes, nas lutas dos empobrecidos.
* Este processo está apontando temas para aprofundamento e afirmação do jeito de "ser" afro-americano e caribenho, por exemplo: práticas de relação de poder devem tomar novos princípios que permitam apreender das comunidades negras o exercício da partilha, do respeito aos maiores, o reconhecimento das hierarquias religiosas e de ancestralidade que resgatam a identidade do povo negro.
* No seguimento desses novos sujeitos emergentes, temos de juntar nossos esforços com as práticas de reflexão que estão sendo elaboradas a partir dos povos indígenas, com ênfase no campo da reflexão teológica. O mesmo processo está acontecendo junto à reflexão da teologia feminista que possibilita o resgate dos valores a partir da vida das mulheres, com acentuação nas relações do cotidiano das comunidades negras.

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