Moçambique

A vida renasce no campo


Cabras, porcos e vacas, campos cultivados. Com o fim da guerra, o agricultor retoma o trabalho de fazer a terra produzir.


Jerônimo Nunes


Chego ao Vale do Limpopo depois da chuva. Há dois anos, quando passei por aqui, andavam-se léguas sem encontrar uma casa. Era o fim da guerra que tinha afugentado os moradores. Estavam nas cidades, passando fome. Poucos confiavam na paz.

Hoje, o aspecto é totalmente diferente. As povoações alinham-se umas após outras à beira da estrada.

Os pastores - crianças de 8 a 10 anos - acompanham rebanhos de cabras, porcos e até algumas vacas, que tinham desaparecido na época da guerra.


PÁSSAROS DA PAZ - Na terra preta do vale, mulheres, crianças e alguns homens tocam juntas de bois que lavram e preparam a terra para a semeadura. Antigamente, a agricultura era serviço de mulher. A fome acabou com esse shinto (tradição). Já se vê milho brotando.

Na lagoa criada pelas chuvas, avisto um enorme bando de pelicanos. Aproximo-me e consigo fotografá-los. Isso teria sido impossível antes, quando os tiros os faziam levantar vôo e fugir da região. Até o pelicano é sinal de paz consolidada.

Passamos Chaimite e entramos na estrada para o Alto Xangane. O padre Firmino aponta-me um grupo de mulheres que descascam amendoim. Aqui dá pouco milho. O solo é de areia e falta água. O amendoim agüenta mais a seca.

A estrada é constantemente atravessada por grupos de mulheres com enormes potes de plástico à cabeça. Andam quilômetros e quilômetros para levar água para casa.


"NÚCLEOS" E "COMUNIDADES" - Chegamos à comunidade de Lomba. Os homens divertem-se à sombra de uma grande árvore, e as mulheres conversam em grupos perto das casas. A capela é feita de caniço e coberta com chapas de zinco. Mantém uma temperatura muito agradável, em comparação com o calor que faz lá fora.

Depois do alegre cântico de saudação aos visitantes, todos se sentam nas esteiras que cobrem o chão ou nas poucas cadeiras que se alinham junto às paredes.

O padre começa analisando a situação e as atividades da comunidade: pré-catecúmenos, catecúmenos (a preparação do batismo leva três anos), famílias organizadas, viúvas (a guerra e a emigração deixaram muitas)...

Feita a pesquisa, a conclusão é que ainda não existe o número suficiente de famílias batizadas para formar uma comunidade. Quando são menos de doze famílias, a diocese prefere falar de "núcleo", e não de comunidade.

Toda a conversa é feita na língua xangane, e o padre me faz um resumo em português.


MULHERES EM AÇÃO - Depois de um cântico, tem início uma longa catequese, também na língua local. Percebo que é uma tentativa de fazer chegar ao povo as conclusões do Sínodo africano.

Em seguida, todos de pé, vamos iniciar a celebração eucarística. As mulheres convidam os padres para fora. Querem fazer uma solene procissão de entrada, como se faz nas grandes catedrais.

As leituras são do Advento. O padre fala da preparação do Natal e pede testemunhos. São as mulheres que tomam primeiro a palavra.

O meu testemunho é traduzido para o xangane. Só após a tradução vêm as palmas, sinal de que a maioria não entende o meu português.


APRENDENDO NO SILÊNCIO - Ao final da celebração, as mulheres entram de novo em grande rodopio. Espalham esteiras na sombra do lado de fora, e chegam as panelas. A partilha da Palavra e da Eucaristia continua com a refeição em comum.

Nessas três horas de silêncio, escutando uma língua estranha, entendi muita coisa: a fé, o esforço do povo para que Deus aqui faça nascer uma comunidade, a alegria dos pobres, a capacidade de escuta e participação das crianças, a união e a partilha desse grupo de cristãos num ambiente de religiões tradicionais.

O carro enche-se de mulheres e crianças que o padre vai deixando nas aldeias. Nessa hora de calor intenso, os campos estão sem trabalhadores. Só os pastores ainda tocam os animais ou se divertem em grupos enquanto o gado pasta.

O padre pergunta quanto custa um cabrito. É caro. Ninguém quer vender. É preciso refazer os rebanhos destruídos pela guerra.


MÁRTIR MERECE RESPEITO - Não posso terminar o dia sem visitar o cemitério. Uma pequena sepultura, assinalada só com uma cruz, mantém a memória do padre Cristóvão, missionário do Alto Xangane assassinado no final da guerra. Um mártir no meio de um povo martirizado merece todo o nosso respeito.

Nessa área com sete missões, onde antigamente trabalhavam cinqüenta missionários, hoje vivem apenas dois, ajudados por dois grupos de Irmãs.

Apesar disso, o Evangelho continua se espalhando por meio do testemunho de tantos cristãos.

Mas a messe é grande, e os poucos trabalhadores correm o risco de se esgotar. A preocupação com todas as comunidades lhes deixa pouco tempo para repouso. - J.N.


HISTÓRIA RECENTE

Colônia portuguesa desde 1505, Moçambique alcança a independência em 1975.

Assume o governo o líder da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), Samora Machel.

De tendência marxista, a Frelimo fracassa em seu intento de implantar um modelo socialista no país.

Começa a guerra contra a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), grupo guerrilheiro anticomunista apoiado pela África do Sul.

Em 1990, a Frelimo abandona formalmente o marxismo e deixa de ser o único partido político do país, ao mesmo tempo em que inicia negociações com a Renamo. A África do Sul, no processo que culminou com o fim do apartheid, retira o apoio à Renamo.

Joaquim Alberto Chissano (da Frelimo), eleito presidente em 1986, é reeleito em 1994.

FONTE: ALMANAQUE ABRIL 97


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Tambores, cânticos e muita alegria