Comunidades Eclesiais de Base

Brava gente brasileira

Rápida visita a Comunidades de Base antes do Nono Intereclesial (São Luís do Maranhão, 15 a 19 de julho). CEBs como "um jeito novo, sempre novo e cada dia de novo" de ser Igreja.


Paulo Lima


Para levantar as sete colunas de um galpão para as quermesses dos festejos juninos deste ano, nada melhor que organizar um mutirão. Feito o convite, vieram vinte pessoas, das quinze famílias que normalmente participam da comunidade São Domingos, no Parque Bristol, Zona Sul de São Paulo.

Foi assim que Seu Maurício - que explica o evangelho nas celebrações dos domingos - trocou a bíblia por uma enxada. Dona Marta, catequista, com mais duas mulheres, cuidou da preparação do almoço.

Por volta das 11 horas, tiveram que pôr mais água no feijão. É que apareceu de surpresa mais gente para ajudar, inclusive um grupo de evangélicos.

Final de tarde. Cansados e sujos de cimento e massa, todos comemoram o serviço feito. A oração fica por conta de Dona Francisca, que durante a semana visita doentes nas casas e hospitais, levando-lhes conforto e solidariedade.

João Dias Batista, 53 anos, o animador da São Domingos, revela que sente prazer em participar da comunidade. E começou faz muito tempo: são mais de vinte anos.

Seu Batista lembra de quando, junto com amigos, carregou madeira nas costas para construir o centro comunitário. "Foi o nosso primeiro mutirão", ele conta. Sente orgulho. Os olhos brilham ao falar dessas coisas.

Um dia desses, ficou decepcionado ao ouvir de um padre que "esse negócio de comunidade é bobagem". Seu Batista reage, acusando o padre de nunca ter posto os pés numa comunidade e de viver "enfurnado na sacristia".

A reação é compreensível. "A comunidade é um pedaço de minha vida", ele afirma. "Aqui, cada um fala daquilo que o toca, dos problemas do dia-a-dia. A gente se conhece, faz amizades, partilha sonhos. É muito bonito sentir que a gente não está sozinho na construção de um mundo mais irmão."


Dados de um levantamento


João Batista e sua comunidade, de fato, não estão sozinhos nesse grande mutirão de fé, trabalho e sonho. A comunidade São Domingos é uma das cerca de 80 mil Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) espalhadas pelo Brasil, que agregam entre 4 e 5 milhões de pessoas. Isso representa uma média de 10,6 comunidades para cada uma das 7.500 paróquias católicas do país.

Os dados são de um levantamento feito recentemente pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), ligado à conferência dos bispos, em parceria com a Equipe de Assessoria do Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Trata-se, por enquanto, de projeções. Para alguns, os números são muito baixos. Há estimativas que falam da existência de 100 mil Comunidades de Base no Brasil. Uma pesquisa mais abrangente ainda está para ser feita.

Segundo o mesmo levantamento, não tem havido queda no número de membros das CEBs. Pelo contrário: em geral constata-se que é maior o percentual de comunidades em crescimento do que estabilizadas ou em diminuição.

As primeiras comunidades nasceram nos anos 60. O número delas, daí em diante, cresceu rapidamente em muitas paróquias e dioceses do Brasil. Logo passaram a ser consideradas expressão de um novo jeito de ser Igreja. Uma Igreja ligada aos setores marginalizados da população, comprometida com a libertação dos oprimidos (veja entrevista na página 5).

De lá para cá, muito caminho tem sido feito. No vaivém da vida das comunidades, momentos de euforia se misturam com momentos de insegurança. Engana-se quem pensa que as comunidades são iguais entre si, seguindo todas o mesmo modelo. O rosto de cada uma depende muito, entre outras coisas, de sua localização no mapa do Brasil, se está no campo ou na cidade, em que paróquia ou diocese se encontra. Sem apoio de bispos e padres fica muito difícil.

Diferentes rostos, mas com muita coisa em comum. A bíblia ocupa um lugar central na caminhada de todas elas: a bíblia ligada com a vida, é preciso dizer. Também a prática da solidariedade e o sonho de um Brasil, uma Igreja e um mundo diferentes.

Uma outra característica importante: a enorme variedade de serviços e ministérios que nascem e se desenvolvem dentro dessas comunidades. Nenhuma outra experiência, instituição ou grupo católico do país mostrou até hoje tamanha criatividade na arte de abrir espaços para a participação, principalmente de gente simples, pessoas pobres, homens e mulheres, rapazes e moças.


Crateús e as comunidades


O bispo Antônio Batista Fragoso, 76 anos, de Cratéus, no sertão do Ceará, foi um dos pioneiros no trabalho com as CEBs. As doze paróquias de sua diocese, que abrangem treze municípios, contam com pelo menos seiscentas Comunidades de Base. Elas funcionam como uma espécie de "escola primária de cidadania e consciência política", analisa Fragoso.

A atuação junto aos trabalhadores rurais constitui uma das principais preocupações da Igreja em Crateús. As CEBs incentivam os lavradores a se organizar e assumir eles próprios o comando de suas lutas. Nas cidades, a batalha maior é pela moradia. Fragoso cita o exemplo de quatrocentas famílias pobres que se uniram para construir suas casas.

A diocese de Crateús trabalha firme na promoção dos ministérios nas comunidades. É a hora e a vez do leigo. Nesse processo, a hierarquia tem que passar para um segundo plano, porque ela "tende à esclerose", segundo Fragoso.

"Nossa prioridade é o acompanhamento pastoral e a formação de cristãos engajados nos movimentos populares", diz o bispo de Crateús. Para ele, as comunidades "são a expressão histórica da profecia gerada no útero dessa mãe velha e envelhecida que é a Igreja".

Profecia, solidariedade, organização e luta popular nunca serão demais num Nordeste onde a miséria atinge um número cada vez maior de sertanejos. Na diocese de Crateús, cerca de 80% da população sabe de experiência própria o que miséria significa.

Fragoso, que caminha com essa Igreja há mais de trinta anos, vê comunidades perdendo bons animadores por causa da migração forçada. Ele lamenta o fato. Mas também adverte que isso não deve ser motivo para desencantos.

Trabalhar é preciso. E acreditar: "Nosso papel é o de suscitar uma nova esperança. É preciso reacender as utopias e nutri-las, a partir da experiência viva das comunidades".


Comunidades em rede


A mais de 3 mil quilômetros de distância do agreste cearense, essa mesma utopia alimenta o povo das comunidades do Setor São José Operário, na região de Brasilândia - a mais pobre da metrópole paulistana. Seis delas se juntaram para colocar em prática um sonho acalentado há anos: criar uma rede de comunidades.

A idéia é favorecer o aparecimento de um projeto alternativo à estrutura de paróquia tradicional. Ali não há igreja matriz, pároco ou missas todos os domingos em cada comunidade. Com ou sem padre, porém, o número de pessoas que participam das celebrações é sempre o mesmo, garante Juçara Terezinha Zottis, da comunidade Nossa Senhora de Guadalupe.

O projeto conta com o apoio do bispo Angêlico Sândalo, responsável por essa região episcopal da Arquidiocese de São Paulo.

Em Brasilândia, aproximadamente 800 mil pessoas convivem diariamente com um rosário de problemas ligados à saúde, trabalho, moradia, educação, transporte coletivo e outros. Mas problemas desse tipo não assustam as comunidades. A fé, vivida em comunidade, faz da situação ruim e da tristeza um desafio constante à solidariedade, à luta, à criatividade do povo.

Desde os primeiros passos da rede, em 1994, a comunidade Imaculado Coração de Maria se transformou no local habitual para reuniões, cursos e encontros. As atividades em comum são organizadas por um conselho pastoral formado por representantes de cada comunidade. Dois padres, uma religiosa e um seminarista atuam na área, e têm muito a fazer: junto com os leigos, e não sozinhos.


Pensando mais longe


Dois anos atrás, as comunidades do Setor São José Operário decidiram se aventurar num terreno onde antes tinham medo de meter o nariz. E foi assim que, em setembro de 95, entrava no ar a Rádio Cantareira FM 96,5. "Na era da comunicação, são necessários novos meios para evangelizar", acredita a catarinense Juçara, que coordena a emissora.

São 24 horas diárias no ar, e as comunidades e movimentos que atuam na área têm espaço garantido na programação. Divulgam trabalhos, promovem debates, mobilizam o povo. "A Cantareira quer despertar cidadania no ouvinte", explica Juçara. "Através dela, a gente consegue chegar ao povão que não participa da comunidade e do movimento popular."

É a rede de comunidades quem organiza, dirige, pauta e opera a emissora comunitária, que consegue alcançar vinte bairros - cerca de 180 mil pessoas. A experiência ganha novos adeptos: de uns meses para cá, as comunidades do Setor Nova Esperança passaram a aderir ao projeto da rádio. Inclusive, algumas dessas comunidades discutem também a possibilidade de se organizarem em rede, como no caso do Setor São José Operário.

A experiência da rádio comunitária está sendo levada para o Nono Encontro Intereclesial de CEBs em São Luís do Maranhão. Juçara vai falar sobre o assunto para centenas de representantes de comunidades de todo o Brasil, além de bispos e assessores.

A ousadia vai além. Por telefone, Juçara estará cobrindo o evento, ao vivo, para a Rádio Cantareira FM. As comunidades da região de Brasilândia mostram que é possível voar mais alto.

Quando se reuniram em preparação ao Intereclesial, elas refletiram sobre o valor de uma emissora de rádio para o trabalho com a massa. Porque é exatamente esse o tema do encontro de São Luís: a relação das Comunidades de Base com o povão maior, a grande massa (veja a matéria seguinte).

"Quem pensa que a experiência do Setor São José Operário é uma coisa isolada, se engana", alerta Juçara. Outras parecidas vêm sendo realizadas por aí, na Arquidiocese de São Paulo e em outros lugares do Brasil.

Porque as CEBs não param. Elas procuram ser "um jeito novo, sempre novo e cada dia de novo" de ser Igreja, costuma dizer Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso.


(Paulo Lima, p. 13)