Mundo Plural: Turkana - Quênia

Príncipes da savana

Eles se separaram dos Karamojong, há trezentos anos, e a lenda conta que foi por culpa de um boi sem-vergonha. Somam cerca de 270 mil e povoam a região noroeste do Quênia.
Adquiriram fama de bons de guerra na época colonial, mas isso não é tudo.


Etienne Manariho


"Os melhores guerreiros da África Oriental", "violentos e dados à rapina", "extraordinariamente corajosos": esse era o cartão de visitas desse povo na época da colonização inglesa.

O certo é que os Turkana devem a isso, ou à fama de que gozavam, o fato de serem ainda hoje tão numerosos e donos de suas terras: são cerca de 270 mil pessoas, numa extensão de 86 mil quilômetros quadrados.

Habitam a região noroeste do Quênia, na fronteira com a Etiópia, Sudão e Uganda. O território é semidesértico e impressiona pela quantidade de areia, rios torrenciais na época das chuvas, arbustos espinhosos e colinas isoladas no meio da planície.

A origem do nome é misteriosa. Poderia derivar de turkwen (homens das cavernas), mas não é seguro. O que se sabe ao certo é que, há uns trezentos anos, se desmembraram dos Karamojong, que vivem do outro lado da fronteira, na vizinha Uganda.

Migraram para o sul , na direção dos rios Kagwalassi e Turkwell, e se estabeleceram em Lodwar, na região ocidental do Lago Turkana, no Quênia, onde esses dois rios se juntam.


UM BOI TEIMOSO ESCAPA:
NASCEM OS TURKANA

São desconhecidas as razões que levaram os Turkana a se separar dos Karamojong. Uma antiga lenda conta que, um dia, muito antigamente, um boi teimoso escapou do rebanho. Foi perseguido até bem longe por um grupo de guerreiros que não souberam depois voltar para casa. Teriam nascido daí.

Para os etnógrafos, esse boi teimoso bem pode ter sido algum líder rebelde que soube aglutinar os descontentes, levando-os para outra parte. Assumindo um nome distinto, o novo grupo teria conservado muitos dos costumes e tradições ancestrais, próprios do grupo de origem.

Os Turkana não são os únicos. Também outros grupos, menos numerosos na atualidade, derivaram dos Karamojong, como os Jiye, Dodoth, Toposa e Donyiro.

A maioria dos Turkana vive no que o governo central queniano chama de "turkana district". Quase todo o trabalho se resume a cuidar do gado. Seminômades até hoje, costumam avançar até os territórios vizinhos.

O estilo de vida é o dos pastores, e a alimentação básica é constituída de leite, manteiga, sangue e carne. Esses alimentos, porém, já não se revestem de um caráter sagrado, como acontece entre os Massai, por exemplo, que habitam a parte sul do país.

Outros costumes próprios dos povos nômades também foram abandonados. Por exemplo, a circuncisão, masculina ou feminina, a não ser quando vivem em regiões de outras tribos que a praticam. Também desapareceu a divisão de classes por idade.


NEM SÓ DE GADO
VIVEM OS TURKANA

O espaço limitado para o tipo de atividade que desenvolvem, as contínuas andanças e os contatos com tribos vizinhas têm provocado mudanças no mundo turkana, levando inclusive muita gente a se sedentarizar.

Mas também favoreceram o cultivo de habilidades em que os Turkana são verdadeiros mestres. A inclinação natural para o artesanato os tem ajudado a se adaptar de alguma forma à cultura industrial que bate às portas de seu território, mesmo sendo este semidesértico.

São famosos os seus ferreiros, que sabem extrair o ferro de uma rocha especial e com ele fabricam lanças e utensílios diversos. Muito apreciados são também seus trabalhos em madeira, pele de animais, marfim e chifres, bem como seus adornos de penas. Não conhecem, porém, o artesanato têxtil, possivelmente porque em sua região não se encontram fibras animais e vegetais.

O trabalho em couro está reservado às mulheres. É em boa parte ainda com peles de animais que elas fabricam túnicas, que são enfeitadas com pedaços de cascas de ovo de avestruz e miçangas das mais diversas cores. É maravilhoso o contraste com a desolação da paisagem.

Também fica por conta das mulheres o cultivo de milho, sorgo, feijão e abóbora, em pequenas quantidades, porque esses produtos não são tidos por essenciais para a alimentação.

A mulher turkana consegue carregar sobre a cabeça vasilhas com trinta a quarenta litros de água. Caminha diariamente até quinze quilômetros em busca do líquido precioso, que é retirado de poços escavados nos leitos secos dos rios.

Por causa da aridez do solo, a economia turkana é, pois, essencialmente pastoril. Bovinos, cabras, ovelhas, camelos e alguns asnos – que se nutrem das folhas de plantas espinhosas e de ervas que crescem nos leitos secos dos rios – constituem a grande e quase única riqueza desse povo. Cabe aos homens a tarefa de cuidar do rebanho e, também, do intercâmbio de produtos com os povos agricultores vizinhos.


RITO PARA GARANTIR
A AJUDA DE DEUS

O mundo turkana gira em torno de três elementos fundamentais: a pessoa, os animais e Akuji (Deus).

Os animais ocupam o centro da vida política, econômica e religiosa. Deles se obtêm o alimento (carne, leite e sangue) e o couro para as roupas. Com eles se paga o dote à família da noiva, na hora do casamento.

Akuji é um Deus transcendente e criador, a quem se oferece o maior de todos os sacrifícios, o ekimonor. Trata-se de um verdadeiro sacrifício propiciatório, isto é, com o objetivo de atrair a bênção e os favores da divindade. É celebrado em raras ocasiões, de tantos em tantos anos, com a participação de toda a comunidade.

Para tanto, é sacrificado um dos melhores bois. Parte da carne, cortada em pequenos pedaços e misturada a porções de tabaco, é então espalhada por sobre o solo, enquanto se pronuncia a fórmula: "Come, pai! Come, mãe!". É como se a própria natureza participasse.

O restante é oferecido aos presentes. Cada um recebe o seu pedacinho, em sinal de comunhão. Em seguida, matam-se outros animais, e a festa continua por alguns dias.

Outros ritos menores seguem o ritmo da vida tribal. Por exemplo, a iniciação à vida adulta, o matrimônio, o culto aos mortos e o culto aos espíritos (os nipen). Oferecem-se sacrifícios aos nipen para aplacá-los, quando ocorre alguma desgraça, uma seca, a morte de animais.

No mundo religioso turkana há ainda lugar para curandeiros, profetas, sonhadores, adivinhos, etc. Além dos sacrifícios de animais, também há cânticos que expressam a religiosidade do povo.


ADORNOS MOSTRAM
QUEM É A MULHER

A Terra, para os Turkana, é uma superfície plana, isolada no universo, para além da qual se cai no vazio. Exatamente o contrário do território que percorrem continuamente com seu gado, que não passa de um labirinto de gargantas montanhosas, vulcões e rochas negras e cortantes. Tudo isso, porém, recoberto de cinza e areia, razão pela qual o solo é plano e árido.

Os adornos que enfeitam a mulher turkana são autênticos capítulos de sua vida pessoal, diferentemente de outros povos, cujas mulheres normalmente os usam para chamar a atenção dos homens.

No caso da mulher turkana, os adornos indicam se ela é casada ou solteira, se na casa houve nascimentos ou mortos, se o marido está viajando ou apenas deu uma saída, se os filhos são pequenos ou estão próximos a entrar na vida adulta, etc.

O cuidado que ela exibe na escolha dos adornos vale também para os filhos: eles podem até andar nus, mas jamais deixarão de mostrar correntinhas, braceletes, colares, etc. E tudo com um significado.

Também a forma de se pentear têm um significado. Serve para distinguir a mulher turkana das mulheres de outros povos, como os Massai ou Samburu. Uma solteira nunca usará o mesmo penteado de uma casada.

Os Turkana também usam tatuagens, porém de forma moderada e apenas no ventre e no peito. Às vezes, as tatuagens se confundem com autênticas cicatrizes. É que o curandeiro costuma fazer cortes para retirar do corpo enfermidades e maus espíritos.


CASAMENTO COMEÇA
COM O RAPTO DA NOIVA

Os Turkana vivem em cabanas de galhos e ramos. A moradia de uma família é um conjunto de seis ou sete dessas cabanas, uma para cada mulher (a mãe do chefe da casa, sua mulher principal e as outras mulheres), além de vários recintos para o gado. Tudo, rodeado por uma cerca, também de galhos e ramos.

Um couro estendido sobre o chão, dentro ou fora da cabana, serve de cama.

As armas são as próprias dos povos nômades, com destaque para a lança, o arco e a flecha. O bracelete em forma de meia lua, com fio cortante, é uma arma muito temível na luta corpo a corpo. Há ainda o escudo de couro.

O matrimônio tem um lado curioso. Tudo começa com o rapto da noiva, consentido entre as partes. A oficialização vem depois, e às vezes se passam anos. A cerimônia do casamento oficial inclui a morte de um boi, cujo esterco é passado no corpo da esposa.

O culto aos mortos se restringe ao pai, à mãe e aos personagens mais importantes da tribo, que têm o direito de ser sepultados no terreno onde está localizada a cabana em que moravam. Logo em seguida, esta é destruída.

O filho mais velho põe um pedaço de manteiga na boca do defunto e diz: "Durma na terra fria e não nos incomode, porque continuamos vivos". Familiares e amigos prestam homenagem ao defunto, com pedaços de tabaco ou goles de cerveja e leite arremessados contra o túmulo.

Os demais mortos não têm direito a essa honra. Seus corpos são simplesmente jogados na savana e servem de pasto para hienas e abutres. Por isso, morrer sem filhos é a maior desgraça que pode acontecer aos Turkana.