Reforma agrária

Rebuliço na praça


Durante quase cinqüenta dias,
74 famílias de sem-terra ocuparam
a Praça dos Três Poderes, em João Pessoa.
Relato de uma visita, antes da expulsão.


Texto e fotos: Luiz Zadra


Eles chegaram de madrugada, no dia 22 de julho, carregando os poucos pertences, paus e lonas de plástico. Rapidinho, construíram os seus ranchos e estão aí, para incomodar. O cartão postal de João Pessoa, a praça central, manchou-se de preto. Um estranho, um pedacinho de roça aninhou-se no coração da pacata cidade, provocando os mais diversos tipos de reação.

São 74 famílias inteiras, incluindo crianças e gestantes, aproximadamente quinhentas pessoas, expulsas da Fazenda Gomes, no município de Alagoa Grande. Muitos desses lavradores moravam há décadas na fazenda, como posseiros ou rendeiros, sem maiores problemas. Tudo mudou dois anos atrás, quando os herdeiros passaram a tratá-los como invasores.


"PRAÇA PROFANADA" – Agora, estão acampados na Praça dos Três Poderes. Querem protestar, expor o seu problema, colocar o seu desafio. De forma organizada, construíram barracos e tomaram a praça. Talvez sem saber, redescobriram a vocação original da praça pública, como lugar de encontro, debate, convívio e... protesto.

É um formigueiro de gente, é muito menino por todo canto. Menino que agora conhece o brilho e o engano da cidade grande, cidade dos sonhos do sertanejo, cidade cruel para tantos.

Eles incomodam demais a cara solene dos palácios da Justiça, do Governo e da Assembléia Legislativa. Não falta quem acha feio o espetáculo da praça profanada por um bando de foras-da-lei. Reclamam de abuso e desrespeito à coisa pública, à praça. Vida de roceiro não merece igual respeito. Coisas valem mais que pessoas.

Tem até quem reclama que as crianças passam aperreios, que a praça não é o lugar adequado para elas. Quando estão à margem das rodovias ou nos incômodos acampamentos por esse Brasil afora, longe dos olhos, as crianças não tocam o coração de ninguém. Ninguém se preocupa com elas. Mas aqui, à vista de todos, arrancam falsos sentimentos humanitários.

A criançada dá vida à solenidade do mármore e do bronze da estátua, que, com o seu olhar distante e ausente, parece estar acima de qualquer envolvimento..., como o poder público. A praça já fez história, mas é uma história que não ensinou, não produziu mudanças.


VIDA DE ACAMPAMENTO – O povo da roça continua dando espetáculo, fazendo amostra de si ao olhar mais vexado ou curioso de quem passa. Na realidade, o acampamento não tem nada de dramático ou triste. É gente acostumada ao duro da vida, e alguns até acham bom esse "passeio" na cidade. São os eternos Severinos, Maria, João Ninguém. É o momento do seu brilho, da sua estréia... – e que se cuidem os grã-finos!

Num dos barracos, uma moça se enfeita e passa batom, enquanto uma menina recém-nascida passeia entre os braços dos acampados, fazendo amostra da pujança da vida. A rainha da praça desafiando o sistema!

No acampamento tem vida, amores, dança e reza... – tem as cores do povo.

Nos arames esticados entre as árvores e os barracos, a roupa do povo secando, feito bandeira sem glória de uma luta desigual.

No fogão de pedras improvisado fumegam grandes panelas de arroz e feijão. E todo mundo apressando com olhos grandes o cozinhar do alimento, garantido pela solidariedade do povo da roça, de ex-acampados que conquistaram um pedaço de chão.


POBRE INCOMODA – A polêmica toma conta da imprensa, que acusa autoridades e órgãos responsáveis. Todo mundo empurrando com a barriga, não querendo assumir a incômoda tarefa de retirar da praça os acampados, esse grande abacaxi.

É tempo de campanha, e uma ação impopular pode ser prejudicial. Por isso, as palavras tornam-se mais suaves. A atitude de fundo, porém, continua a mesma: pobre incomoda, com o seu jeito, a sua cara, a sua forma de ser, o seu cheiro.

Os condenados da terra escutam, sem amaldiçoar, os discursos dos que têm poder mas não vergonha na cara.

O cheiro forte da roça penetrou as solenes arcadas da catedral no dia 15 de agosto, festa de Nossa Senhora das Neves, padroeira da cidade. Esse povo sem jeito de cidade tomou posse dos primeiros lugares na igreja, e isso não lhes foi negado. Estavam ali, falando pelo seu jeito de ser, e também pelo seu silêncio.

É como se rezassem: "Nossa Senhora das Neves, rogai pelos sem-terra, porque os homens do poder ficaram cegos e surdos!"


DECRETADO O DESPEJO – No dia 18 de agosto foi decretado o despejo: 72 horas para desocupar a praça. E lá pelas tantas, no dia 21, aparece um restinho de gente para prestar solidariedade aos acampados. Frei Damião, sem dizer uma palavra, solidarizou-se com o povo. E foi choro de mulher e vexame para tocar no homem.

No dia 23, na catedral, foi realizada uma celebração de apoio aos acampados e a frei Anastácio Ribeiro, que, junto com seis lavradores, foi condenado a quatro anos e dez meses de prisão pelo juiz de Alhandra. A acusação: formação de bando e desacato à ordem judicial. A solidariedade ganhou um novo apelido: "formação de bando".

Passaram-se as 72 horas, e o povo continua na praça, esperando, resistindo. Nas muitas rezas e missas no centro da praça, alimenta a sua esperança e desafia os poderes públicos. Vida que te quero! – este parece ser o desfecho dessa história toda.


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As famílias acampadas na Praça dos Três Poderes foram expulsas pela polícia no dia 8 de setembro.

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Luiz Zadra, missionário comboniano, trabalha há mais de vinte anos na região Nordeste. É autor do livro Caminhos do sertão (Loyola, 1993), coletânea de crônicas e histórias de vida que tem como cenário os Gerais do Sul do Maranhão.


A praça é da polícia

Em nota distribuída à imprensa, as Comunidades Eclesiais de Base da arquidiocese da Paraíba protestam contra a expulsão das famílias acampadas na Praça dos Três Poderes, em João Pessoa, na noite do dia 8 de setembro: "A polícia de choque, gritando, xingando, usando violência, despejou, derrubou tudo e todo mundo. Nenhuma palavra de diálogo. Só a força dos cacetetes e das armas!".

Numa outra nota, que foi lida nas missas dos dias 14 e 15 de setembro, a arquidiocese da Paraíba denuncia "a falta de ética e de informação que alguns radialistas e apresentadores manifestam para com as atitudes da Igreja diante dos últimos acontecimentos relacionados aos posseiros da Fazenda Gomes, à Comissão Pastoral da Terra (CPT), a frei Anastácio Ribeiro e aos seis agricultores condenados".

A arquidiocese critica o fato de a imprensa tentar ligar os atos de solidariedade cristã a partidos políticos ou a pretensões eleitorais. E também o desprezo para com os trabalhadores rurais, considerados "massa de manobra", sem que se reconheça "a capacidade que o povo tem de lutar, de resistir e de procurar os seus direitos".

A nota lembra ainda que, segundo o Evangelho, "o essencial da vida cristã é o amor misericordioso aos excluídos, que se traduz na solidariedade e na defesa dos direitos humanos".