Campanha da Fraternidade '98

País sem educação
não funciona

"A serviço da vida e da esperança" é o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, sobre a educação. E não é só de escola que fala o texto-base.


Está na Constituição Federal, com todas as letras: analfabetismo, no Brasil, só até 1998. Mais uns poucos meses, portanto, e o brasileiro estará celebrando alegremente o fim do analfabetismo no país?

Era para ser assim, mas engana-se quem algum dia acreditou na seriedade da coisa. Aliás, o governo já nem precisa ter tanto peso de consciência. Em 96, através de uma emenda, suprimiu o artigo 60 das Disposições Transitórias, que fixava o fim do analfabetismo para este ano.

Os mais de 19 milhões de brasileiros estatisticamente considerados analfabetos – e que ninguém pense que são apenas velhinhos à beira da morte, pois há pelo menos 3 milhões de crianças de 8 a 14 anos incluídas nesse número vergonhoso, e um número muito maior de jovens – terão que esperar ainda uns bons anos. Se o ritmo continuar sendo o dos anos 92 a 96, vai demorar pelo menos mais duas décadas.

Com cerca de 14,7% de analfabetos (em 96), o Brasil, nesse campo, está muito pior que o Paraguai (8%), um dos países mais pobres da América Latina. Se a comparação for com a Argentina (4%) ou com o Uruguai (3%), a vergonha não tem tamanho.


Urgência nacional


Quando o assunto é educação (um direito social reconhecido pela Constituição), há mesmo muito para reclamar. Um exemplo, apenas um? Quem não se lembra das cenas dramáticas, mostradas pela televisão há umas poucas semanas, de pais enfrentando filas quilométricas, de dia e de noite, com sol ou com chuva, durante dias, tentando conseguir uma vaga para os filhos numa escola pública?

Sobre as escolas públicas há também muito o que falar. Elas vêm sendo rotuladas como "escolas para pobres", afirma o texto-base da Campanha da Fraternidade deste ano (CF-98), sobre a educação. "Pergunta-se: isso não seria uma confirmação da apartação social? O pobre tem de se sentir pobre até na escola?"

Se o problema fosse resolvido com a fabricação de leis, nada mais fácil. A Constituição brasileira, por exemplo, estabelece que o ensino fundamental, para crianças de 7 a 14 anos, é obrigatório e gratuito. É um direito do cidadão, e aos governos estaduais e municipais cabe cuidar para que esse direito seja garantido a todos.

Só que não está sendo – e se a questão, além de vagas na escola, for a da qualidade do ensino, tudo fica muitíssimo mais complicado. De um jeito ou de outro, "para mais de 32 milhões de brasileiros, o direito à instrução e à formação básicas ainda está distante de se realizar, conforme os últimos dados do IBGE (1996)", diz o texto-base.

A Igreja sabe que está tocando num ponto de importância capital para o futuro do país, e pouca gente duvida disso. "Educação é urgência nacional", diz a oração da CF-98. "Sem ela, a sociedade não pode mudar." Ou, nas palavras de Paulo Freire: "Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda."


Em sentido amplo


E o que o texto-base entende por educação – que não é só educação formal, escolar – começa a ficar claro quando se presta atenção nesta outra citação do mesmo Paulo Freire, o grande educador, que morreu, no ano passado, sonhando com um Brasil diferente: "Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher, não estarei ajudando meus filhos a serem sérios, justos e amorosos da vida e dos outros".

Educação, pois, em sentido amplo, propõe a CF-98, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): "engloba a educação escolar" (e o texto-base não poupa espaço para apontar os graves problemas do sistema oficial de ensino brasileiro), "mas vai além dela". Acontece na família, nos grupos e comunidades, através dos meios de comunicação, em vários outros espaços.

E acontece num mundo em rápidas mudanças, o que levanta desafios de todo tamanho. Um mundo de urbanização acelerada e de novas tecnologias. Um mundo que se faz cada vez menor através do fenômeno conhecido como globalização, especialmente no campo da comunicação.

Mundo de ricos e de pobres – como o de antigamente –, de grupos e nações excluídos, de ideologia neoliberal, onde as leis e necessidades do mercado ditam planos de governo e moldam atitudes individuais e coletivas.

O que quer dizer educação em sentido amplo – para a cidadania –, neste mundo de mudanças, fica claro, também, na parte do texto-base que cita os "outros analfabetismos".

Alguns exemplos da lista: trabalhadores que desconhecem os próprios direitos, "analfabetos pós-modernos" (não conseguem usar os programas tecnológicos atuais: um cartão de crédito, uma escada rolante, a informática, manuais de aparelhos eletrônicos, etc.), "analfabetos televisivos" (não dão conta de ler um jornal ou um livro, só sabem ver televisão), "analfabetos do economês" (não entendem de taxas, cobranças, balanços...), "analfabetos políticos" e outros.


Práticas comunitárias


A Campanha da Fraternidade reconhece a importância da tarefa educativa realizada por Igrejas, comunidades, movimentos sociais, organizações não-governamentais, associações, sindicatos e partidos políticos: "Nestes grupos e comunidades, as pessoas têm voz, aprendem a participar, a relacionar-se com os outros, a valorizar o trabalho em comum, a procurar a cidadania, a enfrentar os conflitos e os poderosos, a celebrar a vida e alimentar esperanças, etc.".

Sobra uma crítica para quem, dentro e fora da Igreja, acha que não tem por que se preocupar com o objetivo de "estimular o exercício da cidadania, em favor de uma sociedade justa e solidária", que a Campanha da Fraternidade repropõe: "Infelizmente, ainda existem paróquias, movimentos e grupos que não se integram numa pastoral de conjunto e cultivam uma espiritualidade intimista, sem compromisso com a transformação da realidade".

Merecem destaque, nesse esforço comunitário em prol da educação integral dos cidadãos, segundo o texto-base, os "movimentos e grupos organizados que, pela sua prática comunitária, assumem aspectos fundamentais do profetismo em relação à educação".

É o caso "das comunidades eclesiais de base (CEBs), das comunidades indígenas, os movimentos culturais e populares, os movimentos dos 'sem-terra', dos 'acampados', das 'mulheres trabalhadoras', dos 'moradores de rua' e outros", onde, em comunidade, acontece a socialização do saber e do viver.


Agir em solidariedade


Coerente com essa visão mais ampla e libertadora da educação, o texto-base convoca para o apoio às "iniciativas dos que lutam por profundas mudanças nas estruturas sociais injustas, como, por exemplo, os sem-terra, os sem-teto, os moradores de rua, os grupos de desempregados e subempregados".

Os bispos católicos têm consciência de não estar propondo o tema da educação num país como a Suíça ou a Suécia. Aqui, no Brasil que faz contagem regressiva para a festa dos 500 anos do chamado descobrimento, não é possível esquecer "os resultados decorrentes do processo de extrema concentração de renda e níveis elevados de pobreza".

Porque "povo faminto não aprende; povo doente não tem condições de desenvolvimento".