Chiapas

Internacional
da Esperança


Zapatistas promovem encontro internacional contra o neoliberalismo, com cerca de 3 mil participantes dos cinco continentes. Em discussão, a união de todas as forças que combatem pelo fim da exclusão, por justiça, democracia, dignidade.


Texto e fotos: Iêda Cavalcante


O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) – que se tornou conhecido mundialmente no dia 1º de janeiro de 1994, ao pôr em xeque o governo mexicano com a sua receita neoliberal – deu um passo decisivo ao realizar o Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, entre os dias 27 de julho e 3 de agosto passado, nas comunidades indígenas da Selva Lacandona, no Estado de Chiapas.

O evento serviu como uma demonstração de que o movimento zapatista ultrapassou a fronteira mexicana e virou uma espécie de símbolo para todos os que lutam contra a miséria e a desigualdade.

Umas 3 mil pessoas participaram, dos cinco continentes. Entre elas, sem dúvida, havia também quem pretendia ver de perto se era mesmo verdade e possível a existência de um movimento criado por povos indígenas e com a coragem de enfrentar e denunciar, não apenas as mazelas do governo mexicano, mas também os efeitos detestáveis de um sistema internacional de exploração, chamado neoliberalismo.

Já na abertura, em Oventic, todos puderam observar que tanto a base como a direção do EZLN são formadas pelos próprios indígenas. Tudo foi organizado por eles: a infra-estrutura do grande encontro, a alimentação e também os festejos para recepcionar os convidados. Nessa tarefa nada fácil, contaram com a colaboração de grupos de apoio formados principalmente por professores e jovens universitários da capital do país.


Detrás de nosotros
estamos ustedes...

"Detrás de nuestro rostro negro,
detrás de nuestra voz armada,
detrás de nuestro innombrable nombre,
detrás de los nosotros que ustedes ven,
detrás estamos ustedes.
Detrás estamos los mismos hombres y mujeres simples y ordinarios que se repiten en todas las razas, se pintam de todos los colores, se hablan en todas las lenguas y se viven en todos los lugares.
Los mismos hombres y mujeres olvidados.
Los mismos excluidos.
Los mismos intolerados.
Los mismos perseguidos."

Comandante Ana Maria, na abertura.


INTENSOS DEBATES – O respeito mútuo entre o Exército Zapatista e os indígenas tzotzil, tojolabal, chol e tzeltal foi demonstrado logo na festa de abertura. A comandante Hortência fez um discurso especialmente para agradecer o apoio dessas comunidades. Quase à meia-noite, em meio ao frio, ao silêncio e à escuridão, uma romaria de homens, mulheres e crianças, cada um com uma tocha na mão, desceu a ladeira em direção à praça principal. Emocionados, os convidados aplaudiram por quase uma hora os combatentes chiapanecos.

No dia seguinte, as delegações se deslocaram para as comunidades de La Realidad, Morélia, Roberto Barrios e La Garrucha, enquanto outras permaneceram em Oventic. Essas comunidades foram batizadas de Aguascalientes, em homenagem ao lugar onde se reuniram Emiliano Zapata e Pancho Villa, líderes da histórica revolução mexicana do início do século.

O neoliberalismo foi discutido em suas relações com a política, cultura, comunicação e economia; povos indígenas, negros e outros segmentos excluídos; a sociedade civil e os seus movimentos.

Os debates foram intensos, com espaço também para a polêmica. Muito natural, já que participaram do encontro pessoas de todas as tendências e gostos, cada grupo querendo afirmar o próprio pensamento e propostas. Chamou a atenção o fato de a maioria dos convidados ser formada por jovens e europeus. A difícil situação financeira e a ausência de laços mais estreitos foram as justificativas mais ouvidas para explicar a pouca participação dos demais continentes, especialmente da América Latina.

A delegação brasileira também foi pequena: doze pessoas, representando o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento Sem Terra (MST), a Intersindical dos Eletricitários do Sul e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), além de sete jornalistas.


Sueño y realidad...

"Cuando este sueño que hoy despierta en La Realidad empezó a ser soñado por nosotros, pensamos que sería un fracaso. Pensamos que, tal vez, podríamos reunir aquí algunas decenas de personas de unos quantos países. Nos equivocamos. Como siempre, nos equivocamos.
No fueron algunas decenas, sino miles de seres humanos los que, desde los cinco continentes, vinieron a encontrarse en la realidad de finales del siglo 20.
La palavra que nació dentro de estas montañas, las montañas zapatistas, encontró oídos que le dieron cobijo, la cuidaron y la lanzaron de nuevo para que lejos llegara y diera la vuelta al mundo."

Palavras do EZLN no encerramento.


"PIQUENIQUE DE UTÓPICOS" – Por que tantos jovens europeus participaram? Para Ulla Allegeir, que coordenou a delegação alemã em La Garrucha, a juventude do seu país está buscando uma alternativa de vida, uma utopia, algo em que acreditar e que seja possível realizar. Questiona as formas tradicionais e oficiais de se fazer política. Há, segundo ela, uma grande identificação dos jovens com o movimento zapatista e os seus ideais de justiça e democracia. Por isso tem crescido bastante o número de comitês de apoio aos zapatistas, na Alemanha e em toda a Europa.

O entusiasmo dos jovens foi importante, mas também pesou a experiência de muitos militantes ligados à esquerda, à causa indígena, ao movimento sindical, ao movimento feminista e a outras organizações que lutam pelo direito à terra e em defesa dos direitos humanos. Em La Garrucha, por exemplo, foi fundamental a participação das próprias lideranças indígenas e camponesas, que puderam dar testemunho das suas lutas.

O líder camponês Efrain Villegas, coordenador da União dos Comuneiros Emiliano Zapata, lembrou a conquista da terra em La Morélia, no México, e a morte de cinqüenta companheiros nos últimos dez anos. Cirino Plácido, do Comitê 500 Anos de Resistência Indígena, do Estado de Guerrero, falou sobre a aliança dos povos mexicanos contra o autoritarismo e denunciou a militarização das regiões indígenas. Os bascos contaram a sua luta pela independência na Espanha. Representantes do Chile e do Brasil denunciaram as políticas anti-indígenas dos seus governos.

Isso tudo é apenas uma amostra das muitas experiências relatadas, das denúncias feitas e das propostas apresentadas. Pena que a mídia tenha se preocupado em focalizar apenas os debates em La Realidad e em Oventic, onde compareceram personalidades famosas, como Danielle Mitterrand, Alain Touraine, Eduardo Galeano e até uma estrela de telenovela mexicana. A imprensa, em geral, tentou enquadrar o encontro ora como um piquenique de jovens utópicos, ora como resquício de uma esquerda ultrapassada. Além de o tempo todo tentar reduzir o movimento a um "bando de indígenas submissos ao subcomandante Marcos".

Red intercontinental...

"Haremos una red colectiva
de todas nuestras luchas y
resistencias particulares.

Una red intercontinental
de resistencia contra el neoliberalismo,
una red intercontinental
de resistencia por la humanidad.

Esta red intercontinental de resistencia
no es una estructura organizativa,
no tiene centro rector ni decisorio,
no tiene mando central ni jerarquía.
La red somos los todos que resistimos."

Da declaração final.


CONCLUSÕES E PROPOSTAS – O encerramento aconteceu em La Realidad, com aproximadamente 5 mil pessoas que enfrentaram chuva e lama para ouvir os resultados finais. Coube ao subcomandante Marcos agradecer a presença dos delegados e, sempre lançando mão de frases poéticas, conclamar a todos para a luta contra o neoliberalismo. O comandante Tacho coordenou a conclusão dos trabalhos. Foram apresentados os relatórios das cinco Aguascalientes. Foi consenso a criação da Internacional da Esperança – um movimento reunindo todos os que lutam por justiça e democracia, no mundo inteiro – e de uma rede mundial de comunicação alternativa.

As demais propostas serão submetidas a uma consulta popular no início do próximo mês, a ser organizada por comitês e movimentos solidários aos zapatistas. No próximo encontro, provavelmente na Espanha ou Itália, serão conhecidos os resultados.

No relatório final do grupo que discutiu a questão econômica, afirma-se que neoliberalismo e capitalismo não podem ser dissociados. A luta contra o neoliberalismo é, ao mesmo tempo, uma luta contra o próprio capitalismo como sistema de exploração e dominação social.

Foram apontadas, entre as funções do neoliberalismo, a de restringir o papel do Estado na garantia dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais e a de privatizar empresas públicas para favorecer o mercado. Também foi dada ênfase ao mecanismo neoliberal de transformar os cidadãos em simples consumidores, envoltos numa cultura padronizada e submetidos a valores distantes da sua própria realidade. Valores impostos, que são difundidos, principalmente, pelos meios de comunicação, pela educação e políticas culturais oficiais.

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Iêda Cavalcante, editora do "Porantim", esteve em Chiapas representando o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão anexo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).




Governo endurece

A situação atual dos povos indígenas do México é gravíssima. Através de comunicados enviados pelo EZLN e de matérias divulgadas pela imprensa tem-se conhecimento de que o governo mexicano decidiu endurecer a ação contra eles. Só em Chiapas, há cerca de 60 mil soldados do exército mexicano. A militarização é também ostensiva nos Estados de Oaxaca, Guerrero, Vera Cruz e Puebla, bem como em outras regiões habitadas por indígenas.

No início de setembro, o EZLN decidiu romper as negociações com o governo, por causa da sua ação repressiva, por não cumprir acordos feitos e por não querer libertar dezesseis supostos militantes zapatistas. Pesou também o fato de o governo ter aumentado a militarização, prendendo e torturando indígenas em Chiapas e Guerrero.

Nesse último Estado surgiu recentemente o grupo guerrilheiro EPR (Exército Popular Revolucionário), cujas origens até o momento continuam desconhecidas. No final de agosto, o EPR desenvolveu uma série de ataques contra as forças nacionais de segurança em cinco Estados mexicanos, deixando um saldo de pelo menos quinze mortos e 23 feridos. Em represália, o governo começou a atacar os indígenas.

Os comitês mexicanos de solidariedade aos zapatistas, o grupo de assessores dos zapatistas e a Comissão Nacional de Intermediação – que é presidida pelo bispo de San Cristóbal de las Casas, Samuel Ruiz – divulgaram separadamente documentos protestando contra a atuação do governo mexicano e solicitando que todos os movimentos solidários façam pressão em favor do restabelecimento do diálogo com os zapatistas.

De imediato reivindica-se a desmilitarização das áreas indígenas, a libertação dos supostos zapatistas, o cumprimento dos acordos em torno da temática direitos e culturas indígenas, liberdade às bases de apoio ao EZLN, no norte de Chiapas, e instalação de uma comissão de acompanhamento. – I.C.