Ao aproximar-se da porta, percebe uma tabuleta. Como é quase analfabeta, lê com dificuldade: Abrigo de Mendigos.
Sobre um coberto que os antigos proprietários devem um dia ter usado como garagem, catadores de papelão estacionaram suas carrocinhas e agora se aquecem em volta de uma pequena fogueira.
As pessoas que ela viu entrar estão na sala da casa, formando uma fila. Ela as imita. Uma velha, atrás de um balcão, entrega um cobertor para cada um. Eles parecem conhecer o lugar, pois nenhuma palavra é trocada.
A velha recebe a moça com quatro pedras na mão:
- Aqui não é lugar de vadia. É lugar de gente pobre, mas séria.
A moça sorri, sem parecer entender a ofensa. O plec-plec do telhado indica que a chuva já começou.
- Será que eu consigo abrigo até a chuva passar?
A velha olha para ela com irritação. Mas nota sua imensa barriga. Sente-se repentinamente penalizada.
- Meu Deus, parece que todos os mendigos da cidade resolveram aparecer hoje! Sempre que chove é a mesma coisa. Olha, agora que vi seu estado... É pena, mas não tem mais cama de mulher.
A mulher abaixa-se sob o balcão para pegar alguma coisa.
- Posso lhe dar esses dois cobertores. A casa é grande. Aí pelos corredores, você vai conseguir encontrar algum canto mais sossegado.
Agradecida, a moça pega os cobertores e procura um canto onde se deitar. Quer esticar as pernas, que estão inchadas e pesadas. Acha uma cama em um canto qualquer e deita-se sob os cobertores, encolhida, quietinha, tentando dormir. Mas logo sente alguém bater em seu ombro.
Vira-se e vê um rapaz jovem como ela, com cara de menino envergonhado, que lhe estende um prato.
- Desculpe a intromissão. Vi que você não foi nem pegar o seu prato de sopa e lhe trouxe um. Tome que vai lhe fazer bem.
Tocada pela gentileza, ela senta-se sobre a cama. O rapaz senta-se no chão, ao lado dela.
- É a primeira vez que vem aqui? Eu nunca vi você antes.
- Nem sei como vim para aqui. Foi por acaso que eu vi a tabuleta.
- Bom, eu durmo aqui toda noite, faz uma semana. Sou novo na cidade e ainda não consegui emprego. Aqui a gente também pode tomar banho e lavar a roupa. Assim, dá pra procurar emprego com uma aparência melhor.
- Nessa época é difícil. Todo mundo viaja.
- É verdade. As empresas estão festejando. Até parece que ninguém mais trabalha... E você, também é desempregada?
- Resolvi ir ter meu filho em casa, perto da minha família. Mas na rodoviária, roubaram tudo o que eu tinha: mala, bolsa, dinheiro, passagem. Minha patroa me deixou na rodoviária e pegou direto a estrada, e eu não conheço mais ninguém para pedir ajuda. Faz dois dias que estou assim, ao léu.
De repente, um trovão muito forte assusta os dois. A moça encosta-se na parede e fecha os olhos.
- Não é medo de raio, não. É que está na hora.
- Do quê?
- Meu nenê quer nascer, oras. Hora de nascimento.
- Mas não pode. A mulher que fica na portaria já foi embora. Não tem ninguém para ajudar nem para levar você para o pronto-socorro.
- Não precisa. Só me ajude a achar um lugar sem tanta gente passando.
O rapaz ajuda a moça a se levantar. Andam por toda a casa, mas só acham um lugar mais adequado perto do fogão, na cozinha. Ele estende os cobertores no chão e a ajuda a se deitar.
- Vou procurar alguém que entende disso.
Os únicos que estão acordados são os catadores de papelão, que conversam em roda do fogo.
Os relâmpagos estão cada vez mais fortes.
Parece que os raios se concentram todos naquele bairro. Assustados, alguns dos catadores de papelão rezam em voz alta. O rapaz também se assusta. Entretido na conversa com a moça, não chegou a perceber a força da tempestade.
- Preciso de ajuda. Uma moça tá tendo criança no chão da cozinha.
- Pois que tenha. O que podemos fazer?
- Ela não tem nem com que embrulhar o nenê.
- Problema dela... Não. Olhe, eu ontem achei um lençol velho. Lavei e tá limpinho. Posso emprestar.
O rapaz pensa um pouco.
- Tenho uma camisa que posso trocar pelo lençol.
- Tá bem... Olha, vou dar o lençol para ela. É a primeira vez que vejo alguém mais pobre do que eu.
Uma mulher entra na conversa:
- Podemos dar um jeito de fazer uma fogueirnha perto dela, usando uma lata vazia e alcool. Tenho aqui um pouco.
Um dos homens mexe no carrinho e tira uma caixa de madeira:
- Acho que dá pra usar isso como berço. Pelo menos protege da humidade. A gente forra direitinho com papelão.
Os catadores de papelão acompanham o rapaz, levando o que podem para a moça. Na cozinha ela segura uma criança nos braços. O rapaz lhe dá o lençol, e ela enrola o nenê. Com a caixa de madeira e um dos cobertores, preparam um berço e nele deitam a criança. Outros fazem uma pequena fogueira.
Sentam-se e conversam em volta do menino, admirados de ver como num lugar tão feio e triste, no meio de tanta gente sem nada, pode nascer alguém tão bonito. O pequeno até parece sorrir. Há tempo não se sentiam felizes e tranquilos como nesse momento.
Outras pessoas acordam com a chuva e relâmpagos. Ao saberem do nascimento, também oferecem presentes: uma maçã, um prato, um pano para enrolar.
De manhã, o rapaz abre os olhos, um pouco assustado. Nem se lembra de ter se deitado para dormir.
Simplesmente se encolheu, no meio da conversa, e adormeceu. Agora, só a moça e ele estão ali. Além, é claro, do nenê, ocupado em mamar.
- Sabe de uma coisa? Tive um sonho muito bonito. Eu estava junto com você, cuidando do menino... Se você quiser, de agora em diante ele é meu também.
A moça quer.
- Então, vamos encontrar um outro lugar para ficar. Esse nascimento me encheu de alegria. Ontem, eu tava esmorecido, sem esperança. Hoje parece que eu sou outro.
Sou capaz até de pensar num mundo melhor.
A moça termina de amamentar o nenê, e os três deixam o abrigo.
Nestes dias milhares de pessoas sem lugar para ficar e sem nada para comer vagam pelas ruas. É o exército dos excluídos, homens e mulheres humilhados e desprezados por todos, privados de seus direitos e impedidos de viver com dignidade. Natal é a festa da solidariedade. Não basta oferecer um prato de comida ou um lugar para dormir. É necessário lutar para acabar com a injustiça e a pobreza. |
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