É aqui que mora padre Alex Zanotelli, um missionário comboniano italiano de 57 anos. Diretor de uma revista missionária italiana, por dez anos luta para acabar com o sistema econômico injusto que gera bilhôes de empobrecidos. Mandam-no calar a boca. Demitido, é enviado à África para não incomodar mais as altas esferas do poder e da Igreja Católica.
DESCER AOS INFERNOS - Ao chegar a Nairobi em janeiro de 1990, padre Zanotelli já está decidido a mergulhar no mundo dos mais pobres. Vai morar em Korogocho, o morro da confusão. "É como descer aos infernos", escreve para seus amigos depois de alguns meses. Assim que se estabelece, procura descobrir quem são os mais marginalizados no meio de toda aquela marginalização. Identifica cinco grupos: as milhares de pessoas que trabalham no lixão da cidade, os meninos de rua, as meninas prostitutas, as quadrilhas de marginais e os doentes de Aids.
O barraco de Alex torna-se a casa da fraternidade. Sobre a mesa sempre há uma chícara de chá e um fatia de pão para quem o visita. No pequeno quarto, transformado em capela, uma vez por semana, um grupo de homens, sujos e embriagados, reunem-se para rezar e reler o evangelho a partir da realidade do lixão. Toda noite, das 19 às 23 horas, a comunidade visita os doentes de Aids e celebra a eucarestia em seus barracos.
O BATISMO DOS POBRES - Alex Zanotelli é uma testemunha da luz de Cristo. A sua presença é um grito para o povo sofrido de Korogocho de que Deus não os abandonou. São eles os filhos privilegiados do Pai. "Ao chegar aqui - lembra - pedi ao povo que me batizasse. Queria receber o batismo dos pobres, descer aos infernos e mergulhar no coração da humanidade. Sentia necessidade de ser batizado por esta gente. E eles acabaram por me dar muito mais do que o simples batismo. Eles me deram a graça de poder descobrir, aos poucos, o que significa ser padre e assumir na própria vida o sofrimento dos outros. Entendi o que significa ser pão partido e repartido. Aprendi a conhecer a Deus".
"Um dia - prossegue padre Zanotelli - entrei na casa de Mariamu, uma jovem prostituta que estava morrendo de AIDS. Queria receber o batismo. Perguntei-lhe por quê. 'Tenho sede de Deus', respondeu, com os olhos cheios de lágrimas. 'Sou como a samaritana. Preciso da água da vida para não morrer nunca mais.' Admirado por tal demonstração de fé, dirigi-lhe uma última pergunta: 'Quem é Deus para você?'. 'Deus é mãe!', respondeu-me com voz firme. Olhei para ela sem dizer nada."
Em Korogocho as palavras não servem mais. O que vale é o testemunho de pessoas como Alex Zanotelli que anunciam com a própria vida a doce maternidade de Deus.
"Quando entrei no seu barraco, Jeremias, um dos muitos bébados que catam papelão no lixão, acolheu-me com um abraço e mandou-me sentar. Pediu-me que eu esperasse um pouco e desapareceu. Poucos instantes depois voltou com um pedaço de pão que comprara na padaria. Jeremias disse-me então: 'Toma, Alex. Come! Este é o meu corpo que é dado por vós!'" |
Ao lado dele, Marisa, sua esposa, começava a dar sinais de medo. Foi questão de segundos. Um caminhão, perdendo o controle, bateu contra o carro do casal. O choque foi violento. Os bombeiros tiveram que trabalhar muito para resgatar os dois. As condições de Luís e Marisa eram desesperadoras. Internados na U.T.I., tiveram que lutar por muitos dias contra a morte. Mas tiveram sorte. Depois de algumas semanas voltaram para casa para uma longa temporada de reabilitação.
SONHO DE JUVENTUDE - De pernas e braços engessados, ficaram paralisados na cama. Sem poder fazer nada, aproveitaram para pensar, rezar, planejar o futuro... "Acho que foi um milagre", disse Marisa um dia ao marido depois acordar. "Agora percebo que a vida é um bem precioso que não pode ser desperdiçado. Nestes dias pensei muito naquele projeto que tínhamos quando éramos namorados".
"Incrível, eu também pensei muito nesse projeto" respondeu o marido. "Concordo com você: é a hora de fazer alguma coisa pelos outros".
Marisa e Luís sempre sonharam ajudar padre Miguel, um missionário italiano que há anos trabalhava num campo de refugiados no Quênia, no Leste da África.
Quando se recuperaram do acidente, tiraram o visto, viajaram para a terra africana. Padre Miguel os acolheu com um grande sorriso. "Sabia que mais cedo ou mais tarde vocês viriam para cá. Não há tempo a perder. Se quiserem, vamos dar uma volta".
Entraram num jipe arrebentado e iniciaram o trajeto por uma estrada cheia de buracos. "Esta é minha residência", disse padre Miguel com uma ponta de ironia, apontando um acampamento não muito longe dali. Chegaram no lugar e desceram.
Marisa e Luís ficaram sem fólego. Um espetáculo de sofrimento e miséria abria-se diante de seus olhos. O acampamento parecia um grande formigueiro humano, povoado por milhares de sombras esqueléticas. "Eles vieram quase todos do Sudão. Fugiram para não ser massacrados".
A chegada do padre Miguel foi motivo de alegria. Dezenas de crianças penduravam-se ao jipe. Todos queriam puxar a barba branca de Miguel.
DO ENTUSIASMO AO CANSAÇO - Marisa e Luís não conseguiam falar. Era a primeira vez que viam de frente a miséria. Não tiveram nem tempo para respirar. Descarregadas as malas em um barraco, começaram a trabalhar.
Todo dia era a mesma coisa: feridas para medicar, injeções para fazer, crianças para visitar... Armados de seringas, remédios e coragem, Marisa e Luís se desdobravam para atender a todos.
Passaram-se as primeiras semanas. Pouco a pouco o entusiasmo inicial deu lugar ao cansaço. A fadiga começou a aparecer. O sonho da juventude virava pesadelo.
"Não agüento mais", desabafou Marisa, uma tarde, com um longo suspiro. "Eu também estou farto", continuou o marido. "Tomamos uma decisão apressada. Eu quero voltar para casa", disse a mulher.
Na hora da janta, enquanto dividiam o pouco que havia, Luís falou da intenção de voltar. Padre Miguel escutou em silêncio, para depois concluir: "Sabia também disso: quando a gente é jovem sonha um monte de coisas. Ao aparecimento das primeiras dificuldades, a gente tira o corpo fora. Se quiserem, podem viajar com o primeiro avião. Obrigado."
OS COMPROMISSOS TÊM QUE SER LEVADOS A SÉRIO - Aquelas palavras entristeceram os dois jovens. Não dormiram a noite inteira. "Custe o que custar", disse Luís, "eu fico aqui. Sinto-me um covarde não levando até o fim o compromisso assumido". "Eu também fico. Os compromissos têm que ser levados a sério, se preciso, arriscando a própria pele", concordou Marisa.
Na manhã seguinte, logo nas primeiras luzes do dia, com os olhos cheios de sono, já estavam trabalhando com renovado entusiasmo. Padre Miguel leu no sorriso a decisão deles. Disse simplesmente: "Obrigado".
Já se passaram mais de dois anos desde que chegaram naquele campo de refugiados sudaneses. Marisa e Luís ainda estão lá tomando conta daquele povo sofrido. Embora o prazo por eles programado para o serviço tenha terminado, não querem mais ir embora. Quem experimenta a alegria de doar a própria vida, não desiste nunca mais.
Com mais de 2,5 milhões de quilômetros quadrados, o Sudão é o
maior país do continente africano. Mais extenso que o Estado
de Amazonas, nele caberia cinco vezes um país como a França. Tem um pouco de tudo: desde o deserto do Saara, ao Norte, às florestas equatoriais, ao Sul. Parte do território é banhada pelo Mar Vemelho, o mesmo das histórias bíblicas de Moisés. O Sudão desfruta com o seu vizinho Egito a fertilidade do Rio Nilo, que atravessa o país de norte a sul. O clima é quente e árido, com temperaturas que chegam a 50 graus.
O Sudão abriga uma enorme diversidade étnica e religiosa: são
mais de quinhentas etnias, que falam cerca de cem idiomas
diferentes, sendo o árabe a língua oficial.
QUATRO DÉCADAS DE GUERRAA guerra civil começou meses antes da proclamação da independência (1 de janeiro de 1956). Fala-se de pelo menos 1 milhão de mortos nesses quarenta anos. Há depois, um número indefinido de mortos-vivos: os milhões de sudaneses condenados a se deslocar de um lado para o outro na parte Sul do país. Os refugiados nos paises vizinhos são cerca de um milhão. Quase 5 milhões de pessoas dependem de ajuda humanitária internacional para sobreviver. |
Um ônibus de verdade, pintado de cores berrantes, chega em uma favela da cidade. Ele é bonito e vai atraindo a criançada. Chega uma, mais uma, depois outra... Os olhinhos das crianças brilham de tanta felicidade... Dentro do ônibus não tem nem um banco: eles foram arrancados pra dar espaço para um montão de brinquedos! Tem bola, corda, carrinho, boneca, jogos de montar... Tem panos, papéis, tintas e muito mais!
- Nossa Senhora, até parece um sonho!
Mas não é, não! Trata-se do Ônibus da Ludicidade, um projeto do NTC - Núcleo de Trabalhos Comunitários, da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo.
O projeto nasceu em 1992 com o objetivo de criar um espaço para a criançada brincar, se divertir e aprender. O ônibus é uma espécie de brinquedoteca itinerante (ou seja, cada dia está num local diferente), que funciona como centro de lazer infantil.
Não vá pensando que o ônibus aparece um dia, deixa a criançada com água na boca e desaparece! Nada disso. São visitas programadas - em geral, uma vez por semana, durante um ano e meio ou dois anos.
Adriana Teixeira da Costa, psicóloga e educadora popular que coordena o projeto, conta que a idéia do ônibus surgiu a partir do ônibus-biblioteca, uma espécie de biblioteca ambulante, que leva e empresta livros para moradores de diversos pontos da cidade.
"Tive a idéia de criar um ônibus que também pudesse ser utilizado como sala de aula". A idéia de Adriana foi amadurecendo, até que se concretizou com a doação de um ônibus pela Transurb - o sindicato das empresas de ônibus de São Paulo. A partir daí o projeto tomou corpo: o ônibus, totalmente reformado, teve seus bancos retirados, foi pintado e transformado numa grande brinquedoteca.
BENS CULTURAIS - Um dos objetivos do projeto é trabalhar nas regiões onde há grande evasão escolar. E, pra começar, o ônibus estacionou na Favela Raul Seixas, em Itaquera, Zona Leste de São Paulo.
Lá tinha muita criança fora da escola. As poucas escolas e pré-escolas existentes ali não tinham equipamentos suficientes e apenas uma ou outra ofereciam o serviço de creche. Por isso, é muito comum encontrar na Raul Seixas as chamadas "mães-crecheiras": aquelas donas-de-casa que cuidam, para as mães que trabalham fora, de dez a quinze crianças de uma vez - isso tudo dentro de um barraco apertado.
A educadora conta que entrar na Raul Seixas foi uma experiência e tanto! "É claro que não fomos entrando assim de uma hora pra outra... Fizemos um trabalho com a comunidade", explica. A aceitação foi tão boa que teve criança que se agarrou na roda do ônibus, com um medo danado dele não voltar mais...
Não é pra menos! A criança faz um montão de atividades junto com o pessoal do ônibus: pinta, cria desenhos e histórias, tem contato com livros infantis, faz colagem, trabalha com jogos de montar... Essas atividades - comuns no dia-a-dia de uma criança de classe média - costumam não fazer parte do cotidiano de uma criança de favela, que em geral não cursa a pré-escola e também não tem em casa os chamados "bens culturais".
Trata-se de uma injustiça e tanto, porque saber esse tipo de coisa é cobrado - de todas as crianças - na primeira série. "Por isso, há grande chance dela fracassar", diz Adriana. "Essa injustiça é fruto de um sistema perverso".
E o ônibus quer justamente isso: democratizar o acesso à cultura.
Um outro objetivo do projeto é organizar a comunidade para que ela se preocupe com as suas crianças. Não só com a questão da escolaridade. É preciso pensar, também, no abandono dessas crianças.
Como exemplo, Adriana cita a mãe sozinha, que, ao morrer, deixa os filhos sem eira nem beira..."Com a comunidade organizada, criam-se mecanismos de proteção dessas crianças. Procura-se o pai, um parente ou mesmo adota-se esses pequenos".
Sem apoio, uma criança nessa situação vai parar na Febem, e a burocracia faz com que ela fique lá um ano ou mais, para se encontrar essas mesmas soluções.
MUTIRÃO - Enfim, o Ônibus da Ludicidade não é um programa alternativo onde a criança vai só para brincar. Quer criar canais de participação, "batalhar para que a comunidade comece a intervir", fala Adriana.
Na favela Raul Seixas deu certo! O ônibus ficou lá durante dois anos e, como continuidade dos trabalhos, foi construída uma brinquedoteca em mutirão, uma iniciativa da própria comunidade. Hoje o pessoal do NTC acompanha os trabalhos, mas quem cuida de tudo são as pessoas da própria comunidade.
Em São Paulo, o projeto está em andamento na favela do Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo. E, segundo a pessoal do NTC, o ônibus está fazendo escola. As cidades de Garça, Ourinhos e Campinas (interior de São Paulo) implantaram o projeto como política pública. "A idéia é fazer uma cidade lúdica, mais humana. Uma cidade que pense o espaço da criança", diz Adriana. (Tânia)
O que é o NTC? |
O NTC - Núcleo de Trabalhos Comunitários é ligado ao Centro de Educação, da PUC de São Paulo. Surgiu da preocupação com meninos e meninas de rua, crianças de comunidades carentes, prostitutas, drogados, analfabetos e todos os excluídos dessa sociedade. O NTC existe há dezoito anos e atua em três linhas específicas: ensino, pesquisa e intervenção na realidade. A idéia é unir teoria e prática. Todos os projetos do Núcleo acontecem junto com as crianças, jovens, seus pais e a comunidade. Depois de um tempo, quando ele já está caminhando sozinho, é a comunidade que o leva adiante (é o caso do Ônibus da Ludicidade, na favela Raul Seixas). Outra característica do NTC é o trabalho articulado com os movimentos sociais, sindicais, populares e pastorais. São, praticamente, parcerias do Núcleo, com os mesmos ideais de justiça social, igualdade e luta contra o racismo.
O Núcleo tem uma série de outros projetos: |
E aí!? Gostou da idéia? Entre em contato com o pessoal do NTC. |
O endereço é: Rua Monte Alegre, 984, sala 26, subsolo, Prédio Novo da PUC, São Paulo, SP. Fones: (011) 864-6503 e 263-0211 ramal 361 Fax: (011) 62-4920 |
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