GUARANI

A RESISTÊNCIA DE UM POVO



Desta vez, nada de avião. O jeito é viajar de ônibus. Com medo da distância e do cançaso, só Braskuka e Aiká me acompanham. Na aldeia dos Kaiowá, Jesuíno nos espera para falar da festa dos meninos.


São seis horas da manhã. Chegamos a Panambizinho, perto do rio Paraná, não muito longe das Três Lagoas. É aqui que vai ter a festa do Kunumipepy (a festa do menino): com a cerimônia da perfuração dos lábios, os adolescentes passam a fazer parte do mundo dos adultos. Antigamente, punham no lábio inferior uma pedra verde, chamada tembetámbé = lábio, itá = pedra). Hoje é uma varetinha de madeira.

No ponto de ônibus, somos recebidos por Jesuíno, um dos organizadores da festa. Com ele vamos à aldeia, onde vivem cerca de 250 pessoas. A primeira celebração deste ritual aconteceu em 1989, quando os Guarani resolveram retomar uma antiga tradição como forma de resistência contra a invasão dos brancos e a imposição de sua cultura.


A CASA GRANDE


Jesuíno nos mostra a ogaguasu ou a casa grande, que acaba de ser construída para esta cerimônia. É uma construção em forma ovalada, toda de sapé, parecida com as casas indí-genas do Parque do Xingu.

Está orgulhoso. O trabalho está bem feito. Ele nos convida a entrar em sua casa e, depois das apresentações, começa a falar da cerimônia.

- A festa do tembetá é o nosso registro de nascimento. Indica que fazemos parte de nosso povo. O próprio Tupã, filho predileto de Nossa Mãe, traz no seu lábio um tembetá fulgu-rante. Quando viaja pelo céu, Tupã vai trovejando e o tembetá, ao se mover, provoca raios que anunciam a esperada chuva.

Quem não fura o lábio não é índio puro. Sobre ele e sua família podem se abater muitas desgraças.

Faz quatro meses que nos preparamos para esta festa. Tivemos que refazer a casa grande e preparar as roças do milho branco, o ti morotiado para fazer a chicha, uma bebida fermentada servida durante a festa aos convidados e também às crianças que vão ter os lábios furados. O efeito dessa bebida alivia a dor.

Nesse período, as mães deixam crescer o cabelo e trabalham muito para costurar as roupas da cerimônia para seus filhos. Durante a festa, os meninos devem vestir o ponchito, que é um poncho pequeno; o chiripá, que é um tecido que passa no meio das pernas e é preso à cintura, como se fosse um calção folgado; o txumbé, que é um cinto colorido feito de algodão, que vai prender o chiripá; o jeguaká í, que é uma espécie de tiara de algodão enfeitada de penas amarelas de tucano, para se colocar na cabeça; o kuapykuahá, que é uma pulseira trançada com os cabelos da mãe e o jehasahá, um grande colar feito de contas brancas e pretas que cruza o peito da criança.

- Quantas crianças vão participar desse ritual? - pergunta Braskuka.

- Nesse ano serão 19 meninos, alguns da aldeia de Lagoa Rica - responde Jesuíno.

- Eles já estão aqui na casa grande há várias semanas, para aprender as tradições de nosso povo. Os meninos seguem uma dieta de relativo jejum, observando determinados tabus ali-mentares. Para o nosso povo muitos alimentos são proibidos.


"SÓ GUARANI PODE FURAR O LÁBIO"


Como a preparação vai durar mais duas semanas e a gente precisa visitar os Tapirapé, pedimos para ele contar como vai ser a festa.

Jesuíno fica meio encabulado, pois não conhece a gente. Depois de alguma insistência, concorda.

- Vou contar só um pouquinho, só aquilo que o branco pode saber. No dia da festa, o pai de cada menino traz um banquinho que fez com madeira do mato. As crianças, dentro da casa grande, dançam e bebem chicha, para ficar um pouco zonzas e não sentir a dor. As mães choram ritualmente. À tarde, as mulheres entram na casa grande e ficam trancadas até o fim da cerimônia, pois elas estão proibidas de participar. Os homens que têm lábio furado e os meninos que se prepararam vão para o pátio. Os homens que não têm lábio furado e os que não são guaranis, têm que ficar atrás da casa, sem poder ver, porque eles não são puros. Não podem ver nadinha, só ouvir. Então, cada criança senta em seu banquinho e o pa' i, que é o pajé, vai furando o lábio com uma agulha que o próprio Nhandejara, nosso Pai, deu. De-pois disto, todos são cha-mados para dançar e beber chicha. A festa dura até a madrugada.

- Só Guarani pode furar o lábio? - pergunta Aiká.

- Só Kaiowá ou parente nosso... - responde com firmeza o nosso guia.

Pena não podermos ficar para a festa. Mas, como o próprio Jesuíno explicou, não poderíamos participar de seus momentos mais importantes, por não fazermos parte do povo kaiowá. A viagem, porém, não foi inútil. Graças ao relato de nosso guia, agora conhecemos um dos rituais mais significativos de um povo que está reunindo todas as suas forças para ressurgir das cinzas da humilhação, do desprezo e da marginalização.