Tupinaquim

O SONHO QUE VIROU PESADELO


Jaguaruçu era um dos chefes da aldeia Itaquamirim, que ficava não muito longe da praia, numa região que hoje constitui o sul da Bahia.

Seu povo chamava-se Tupinaquim, isto é, "parente do Tupi" e vivia quase sempre à beira-mar ou próximo de rios.

Valentes guerreiros, os Tupinaquim se espalhavam por todo o litoral, desde o sul da Bahia até o Paraná. Apenas no litoral sul fluminense viviam seus adversários, os Tupi-nambá ou Tamoio, mas que falavam a mesma língua.

Um dia, Jaguaruçu saiu com vários parentes para uma pescaria, pois estava preparando uma grande festa e precisava ter bastante peixe para os convidados.

Tranqüilo, Jaguaruçu observava o filho Ibiratá, que com outros jovens se afastava da praia, numa silenciosa jangada.

De repente, ouviram-se gritos. O chefe assustou-se e virou para a enseada, próxima à saída de um rio.

"Igaraçu! Igaraçu!", isto é, "Canoa grande! Canoa grande!"

O valente cacique mal acreditava no que via: barcos enormes, duas vezes mais altos que as casas da aldeia, enfeitados de branco. Parecia um sonho, uma coisa do outro mundo.

Com os gritos, todos os que estavam dispersos, começaram a se juntar. Em toda sua vida, Jaguaruçu nunca tinha visto coisa semelhante.

O medo foi tão grande que alguns correram para buscar as armas, enquanto outros ficaram imobilizados onde estavam.

O espanto aumentou ainda mais quando um pequeno barco deixou a grande caravela, vindo na direção deles. Era Nicolau Coelho, enviado pelo comandante Cabral para realizar aquele primeiro contato. Ele já estivera nas Índias e falava árabe. Quem sabe poderia entender este novo povo...

O mar estava calmo e, rapidamente, a estranha canoa chegou à praia. Para surpresa de todos, nela havia apenas uma pessoa que, com um grande sorriso, tentava se comunicar. Mostrava-se tranqüilo, como se já os conhecesse há muito tempo. Vendo que não se enten-diam, o visitante, com gestos, pedia aos homens de Jaguaruçu que se acalmassem e dei-xassem as armas no chão.

Criando coragem, o chefe tomou a dianteira e disse em tupi:

- "Erê jubê?" - isto é, - "Já chegaste?"

Era assim que os Tupiniquim recebiam os visitantes. Com aquela saudação, ele queria saber como o recém-chegado estava e se havia feito boa viagem.

Evidentemente o visitante não entendeu nada, mas imaginou, pelo tom da voz, que aquilo era uma saudação.

Com um novo sorriso, o estrangeiro tentou falar algumas palavras oferecendo, ao mesmo tempo, dois presentes: um gorro vermelho e um chapéu preto.

Sem hesitar, Jaguaruçu tomou os objetos na mão e, por sua vez, ofertou um colar de conchinhas brancas, que trazia no pescoço e um cocar de penas, que lhe presenteou Caboré, outro líder do grupo. Aquele primeiro encontro terminou rápido. Todos se sentiam muito inseguros. O mais importante já tinha sido feito - a troca de presentes -, que representou um gesto de paz de ambos os lados.

Quando a canoa de Nicolau Coelho voltou para o grande barco, os Tupiniquim respiraram aliviados. Ao mesmo tempo sentiam-se frustrados, pois não haviam se entendido e muitas perguntas ficaram sem respostas.

O contato durou vários dias. Jaguaruçu e seus parentes foram até o grande barco e os estrangeiros vieram até a aldeia.

Antes deles irem embora, o cacique teve um sonho. Viu o poderoso Mair, o grande Pai, muito triste. Não falava nada e estava muito longe. Quanto mais Jaguaruçu tentava se apro-ximar, mais ele se afastava para dentro da mata.

Assustado, o chefe Tupiniquim acordou e não conseguiu mais dormir. Pela manhã foi procurar seu sogro para contar o estranho sonho.

- Será que Mair não está gostando de termos acolhido os estrangeiros? - perguntou ansioso.

- Se Mair não gostou, ele vai falar mais uma vez - respondeu-lhe o sogro.

Ninguém ficou sabendo se Mair falou outras vezes com o chefe Jaguaruçu. Mas com o tempo, a realidade mostrou que aquele sonho fora um aviso.

Anos depois, começaram as guerras de conquista. Aqueles que pareciam amigos, em menos de cem anos haviam tomado todas as terras do litoral, escravizando os povos Tupiniquim, Tamoio e Potiguara. Os que não aceitavam a escravidão eram massacrados. As doenças que aqueles estrangeiros trouxeram deixaram mais mortos que as próprias guerras.

Calcula-se que 70 por cento da população indígena do litoral foi destruída nesses pri-meiros cem anos da conquista. A ilusão da-quele primeiro contato tornou-se um grande pesadelo.


Para saber mais:
Benedito Prezia - Terra à vista, descobrimento ou invasão,
Ed. Moderna, Col. Viramundo, 1995, 8ª Ed.