Sateré
O RITUAL DA TUCANDEIRA
O Sateré, povo de língua tupi que vive no Pará, na divisa com o Amazonas, era uma nação guerreira. Devido aos massacres, teve que se unir a seus parentes, os Maué, formando hoje o povo Sateré-Maué. Um ritual doloroso marca a passagem para a vida adulta. Quando o menino se torna adolescente, pede aos pais para fazer a tucandeira ou tocandira, que é o ritual de iniciação à vida adulta.
Fazia tempo que um grupo de meninos da aldeia de Maraú, liderados por Irineu, manifestava a seus pais o desejo de fazer o ritual da tucandeira. Mas a resposta era sempre a mesma:- Vocês não vão agüentar, pois vão sofrer muito!
Eles continuavam insistindo, pois o jovem sateré não pode ter medo da dor. Para eles, passar por esta prova era muito importante. É esse ritual que marca a passagem de uma criança para o mundo dos adultos. É muito doloroso, pois o menino deve permanecer por um tempo com as mãos enfiadas numa luva cheia de formigas de fogo, cujas mordidas são tão doloridas que podem dar febre e provocar vômito.
Com a insistência das crianças, os pais foram avisar os tios para começar a preparação da festa, já que é preciso ter muita comida e bebida para os convidados.
Finalmente chegou o dia marcado. Os meninos levantaram cedo para terem seus braços pintados com o preto do jenipapo feito por suas mães. Em seguida, com um dente de paca, elas começaram a riscar a pele das crianças até sangrar.
A luva, o sá ari pé, foi confeccionada com palha pelos padrinhos, que são os tios maternos. Ela tem forma redonda, mas pode ter também forma de peixe ou de ave. Na véspera, as formigas foram capturadas vivas e conservadas num bambu, o tum-tum. No dia da cerimônia, pela manhã, foram colocadas numa bacia com tintura de folha de cajueiro, que tem efeito anestesiante. Assim, meio adormecidas, foram postas na luva, com a cabeça para fora e o ferrão para dentro.
Quando tudo estava preparado, Batista, o chefe da cerimônia, convidou todo mundo para ir ao barracão e começar a dança.
Os jovens e as moças solteiras acompanhavam os candidatos numa mesma fila, junto com os outros homens da aldeia.
De repente, no meio da dança, ouviu-se um som agudo e prolongado. Era o ritual propriamente dito que estava começando, marcado pelo nhaa-pé, que é um chocalho preso no joelho dos jovens iniciados.
Batista, levantando o braço de Irineu, começou a cantar a música da tucandeira, que é uma dança rítmica, com passos para frente e para trás, indo a fila ora para a direita, ora para a esquerda.
Num dado momento, a dança parou e o chefe de cerimônia, ao som das buzinas de taquara, fez um pequeno discurso falando sobre a origem e a força do ritual. Neste momento, a luva foi colocada na mão de Irineu, que se mostrou muito corajoso. Os jovens saterés não podem ter medo.
Como o anestésico de caju é fraco, as formigas acordaram logo e passaram a atacar violentamente sua vítima. Em contorções de dor, Irineu batia os pés e levantava as mãos, numa demonstração controlada de sofrimento. Os acompanhantes o seguravam para evitar movimentos muito bruscos, que poderiam machucá-lo.
A dança recomeçou mais forte, juntamente com o canto cadenciado. Com as lágrimas caindo, Irineu levantou a cabeça, mostrando o orgulho por ter vencido a prova. A luva foi então retirada de sua mão, recomeçando a prova com os outros meninos.
Os que passavam iam para suas casas receber o carinho e o abraço de uma menina.
Refeitos da dor e revigorados pelo amor da companheira, os meninos mais tarde vol-tavam ao pátio, para continuar a dança. Agora já eram homens, podendo inclusive, em pou-co tempo, assumir uma família.
(Texto elaborado a partir das informações do Pe. Henrique Uggé,
colhidas em 1990 nas aldeias de Kuruatuba e do rio Andirá.)
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